O ACIDENTE
Sonynha é levada por seu dono ao hospital das câmeras. Ela não se mexe, não vê nem fala nada, aparentemente não há esperança de salvá-la. Quase sem vida, é imediatamente encaminhada para a emergência.
É atendida pelo Dr. Rodrigo, um negro muito simpático, baixinho e gorducho, que a examina cuidadosamente, sem pressa alguma, concentradíssimo no que faz. De repente, num gesto preciso, recoloca no lugar uma pecinha solta que coordenava a saída da lente. Depois, vira-se para seus colegas e sorri: “Ela não tem nada”.
Sonynha pouco a pouco vai despertando da inanição. Vagarosamente, recolhe a sua lente, que antes estava presa e emperrava todos os movimentos do seu corpo. Quando olha o Dr. e percebe estar num hospital, começa a chorar.
“Por que está chorando?” – Pergunta o médico que acabou de salvá-la. “Você está curada, deveria ficar contente!”
Com a voz embargada, ela responde: “Eu queria ter morrido quando fui jogada no chão!” – E antes de voltar a soluçar, balbucia com muita tristeza: “Nunca mais vou poder fotografar... Eu quero morrer!”
O médico procura reanimá-la: “Filha, você não tem nada de mal, foi só um deslocamento simples. Já está curada, pode voltar a fazer suas fotos!”
Mas Sonynha nem sequer ouve a voz do médico, não para de chorar e de se lamentar, mergulhada numa depressão profunda. Diante desse quadro, o Dr. a encaminha ao psicólogo de plantão, que por sorte está disponível naquele momento.
O psicólogo, Dr. Edmundo Froes, um homem de óculos espessos e uma farta barba ruiva, logo percebe a fragilidade de Sonynha: “Conte o que a preocupa, minha filha... Vai lhe fazer bem.”
Sonynha, aos prantos, só consegue repetir: “Eu queria ter morrido ali no chão! Eu queria ter morrido!”
“Desabafe, conte para mim o que aconteceu.” – Diz o psicólogo, com voz calma e pausada, enquanto, para acalmá-la, aplica delicadamente uma injeção de óleo. Mas de nada adianta. Através das grossas lentes de seu óculos, vê Sonynha chorar e chorar copiosamente. Então decide permanecer calado, esperando com toda a paciência que ela se acalme.
Depois de alguns minutos, Sonynha sente-se impelida a falar: “Preciso mesmo desabafar...” – Diz, afinal, enxugando as lágrimas com o lenço que Dr. Froes lhe entregara.
Ajeita-se mais confortavelmente na poltrona, respira fundo e prossegue: “Eu chamava o meu dono de pai, de tanto que o amava. Ele também gostava de mim.” – Faz uma longa pausa, mas o psicólogo permanece mudo, observando-a.
Ela prossegue: “Meu pai sempre adorou fotografar comigo, sempre elogiava a definição da minha lente, a nitidez das minhas fotos. Por outro lado, ele sempre foi temperamental e me exigia demais. Eu precisava ficar o tempo todo atenta! Tinha que disparar exatamente no momento da sua ordem, nem um milésimo de segundo a mais!”
“Como assim?” – Pergunta calmamente o Dr. Froes.
“Meu pai era fanático por flagrar os gestos e as expressões das pessoas, no momento certo! Por isso detestava quando as pessoas se juntavam num grupo, e ficavam posando para a foto, olhando para nós e sorrindo. Toda vez que isso acontecia, ele me proibia de fotografar! Dizia que esse tipo de foto posada é lugar-comum! Só quando todos se descontraíam é que ele me acionava, para flagrar as expressões.”
À medida em que falava, Sonynha parecia esquecer da tristeza, empolgando-se com a narrativa.
“Quando meu pai me levava a uma festa, adorava que eu fotografasse os gestos das pessoas. Eu enquadrava as crianças pegando doces, adultos conversando entre si, ou então uma pessoa apontando para o outra... Tudo o que fosse expressivo ele me mandava fotografar. E não eram só pessoas, não! Às vezes saíamos juntos para fotografar paisagens. Ele sempre me obrigava a encontrar um ângulo diferente, inusitado. Meu pai negava-se a fazer a ‘mesmice’ – aquilo que todo mundo faz. Ele odiava o lugar-comum!”
“E você gostava dessa vida? Você concordava com seu pai?”
“Gostava muito” – Responde, visivelmente empolgada. “Eu me sentia muito mais importante do que as outras câmeras, que só faziam fotos posadas, de gente parada e sorrindo... aquela mesmice fácil!”
“Então, pelo que me diz, você e seu dono... ou melhor, seu pai, se admiravam mutuamente.”
“Nós nos amávamos!”
“Mas você disse ao médico que foi atirada ao chão... Foi seu pai que fez isso?”
Com essa pergunta, Sonynha cai novamente em pranto. Dr. Froes a abraça carinhosamente e diz com muita calma: “Minha filha, para tudo na vida há um motivo. Vamos juntos encontrar esse motivo, só assim você voltará a viver bem...”
Sonynha enxuga as lágrimas com um lenço que o psicólogo lhe ofereceu, e volta a falar: “Eu já disse que meu pai era muito temperamental, não disse?”
“Sim. E daí?“
“Daí, meu pai sempre gostou muito de gatos. Naquele dia, ele viu um dos seus gatinhos subindo no muro do jardim, correu e me buscou no armário, com toda a pressa. Fomos para o jardim e eu vi o gatinho bem no alto do muro, numa posição ótima. Era exatamente a foto que meu pai queria. Mas no momento que ele me disparou, não sei por que eu...”
Embargada pela emoção, Sonynha não pode terminar a frase. Então o psicólogo completa: “Você não conseguiu fotografar... Foi isso?”
“Foi isso mesmo. Eu não sei o que aconteceu comigo... Quanto mais ele apertava meu disparador, mais eu ficava paralisada... A foto não saía... Acabou que o gatinho desceu do muro e eu não consegui fazer a foto.”
“E o que aconteceu depois?” – Pergunta Dr. Froes, mas já supondo a resposta.
“Ele ficou com muita raiva de mim e me atirou no chão, com toda a força!” – Ao relembrar a cena, recomeça a chorar muito e a se maldizer: “Meu pai nunca mais vai me aceitar! Eu queria ter morrido ali! Eu queria ter morrido!”
Nesse instante toca o telefone interno. Dr. Froes atende e sussurra algumas palavras, depois volta-se para Sonynha: “O seu pai ainda a ama.”
Ela leva um susto: “Como pode saber disso?”
O médico abre a porta do consultório e Sonynha vê entrar, nada menos do que o seu pai. Perplexa, não sabe se sente medo ou alegria. Ao vê-la, o pai a acolhe nas mãos, como num berço, enquanto exclama contente: “Sonynha! Que bom! Você ficou boa!”
Sonynha fica tão emocionada que só consegue balbuciar: “Pai, você não quer mais me matar?”
“Matar você? Que bobagem é essa! Eu custei muito a encontrar quem pudesse lhe salvar! Já estava começando a perder a esperança, quando soube deste hospital.”
Sonynha olha para o seu dono, atônita, continuando a repetir baixinho consigo mesma: “Pai, você não quer mais me matar?”
Ele responde, comovido: “Você é muito valiosa para mim... Eu quero, sim, é pedir perdão pelo que lhe fiz... ”
“Pai... você ainda me ama?”
Ele carinhosamente a aperta contra o peito e depois a guarda no bolso do casaco: “Juntos, nós ainda vamos fazer muitas fotos bonitas!”
Dr. Froes, sorrindo, se despede. Em seguida, carregada pelo pai, Sonynha volta para o seu lar, onde é cuidadosamente guardada na confortável bolsinha de couro, a espera de um novo motivo para ser fotografado.
sendino.claudio@gmail.com
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