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sábado, 8 de fevereiro de 2020

* ARTIGO • A primeira eletrola de alta fidelidade

Desenho atual lembrando o primeiro sboço do móvel da eletrola


A primeira
eletrola de alta fidelidade

Sob o calor escaldante do Sol, no verão de 1958, eu e meu irmão Roberto percorríamos a pé as ruas do Centro do Rio, levando uma lista de peças eletrônicas para comprar nas casas especializadas. Só pensar que teríamos finalmente a tão sonhada eletrola de alta fidelidade nos deixava tão felizes, que pouco importava o suor ensopando nossas roupas.
Éramos muito amigos. Eu acabara de fazer quinze anos e cursava a terceira série do ginasial, como era o nome do ensino básico da época. Beto, como eu o chamava, tinha cerca de vinte e oito, já era primeiro-tenente de Engenharia do Exército, locado em Minas Gerais, na cidadezinha de Itajubá. Passava somente os fins de semana em nossa casa, no Rio, onde eu sempre o aguardava com ansiedade, para trocar ideias e saber das novidades de Itajubá.
Beto tinha a mente voltada para a eletrônica. Mais tarde se formaria em engenheiro eletrônico na IME (Escola Militar de Engenharia), onde fez pós-graduação e se tornou  professor. Mas nessa época, em 1958, todo o seu conhecimento se limitava a um cursinho por correspondência recém completado na Continental School, nos EUA. Depois desse curso, passou a colecionar todas as revistas nacionais sobre o assunto, e algumas estrangeiras.
Em nossas demoradas conversas, volta e meia ele deixava de lado as novidades de Itajubá e da vida no quartel, para falar de artigos que lia nas revistas de eletrônica. Eu apreciava muito os radinhos que ele montava como exercício do curso, inclusive um receptor “galena”, que funcionava com uma pedra de cristal e uma agulha.
Certo dia, Beto me mostrou um artigo sobre a grande novidade da época: a alta fidelidade. A reprodução sonora tinha uma qualidade fantástica, muito próxima da realidade, dizia o texto. Esses amplificadores de alta fidelidade ainda não haviam chegado ao comércio, aqui no Brasil, mas na página estava o diagrama completo e a relação de peças necessárias para montar o aparelho.
Sabia que, assim como eu, meu irmão gostava muito de música. Ele ficou tão empolgado, que me contaminou. Decidimos então colocar em prática o projeto, a qualquer custo.
O entusiasmo aumentou ainda mais quando encontramos também o projeto de uma caixa acústica para alto-falantes de alta fidelidade. Nesse tempo, os sons eram todos mono, não se falava em estéreo. Mas somente o fato de trabalhar com dois alto-falantes – um de graves e outro de agudos, já era uma grande novidade, um grande avanço.
Eu copiei o desenho da caixa acústica e, como era muito hábil para o desenho, ampliei o projeto para uma eletrola completa, num móvel único. Ali cabia o toca-discos, o amplificador e a caixa acústica. Fiz um desenho em perspectiva e outro técnico, com todas as medidas. O projeto deixou meu irmão simplesmente maravilhado, aumentando o nosso entusiasmo.
Aproveitando uma manhã de sábado, saímos pelas lojas do Centro fazendo uma tomada de preços de todo o material eletrônico necessário, incluindo o toca-discos, que não poderia ser automático, como se usava na época. Teria que ser do tipo manual, com agulhas de alta fidelidade, que já existiam à venda em algumas poucas lojas de importados. Na volta, fui à marcenaria do seu Ezequiel, próxima de casa, fazer o orçamento da construção da eletrola propriamente dita, toda em madeira.
O projeto não era nada simples. Somente a caixa acústica, teria que ser de madeira maciça e cheia de compartimentos internos, numa espécie de labirinto, com medidas precisas, e toda forrada com lã de vidro. Também os compartimentos para o toca-discos e o amplificador possuíam encaixes, cujas medidas exatas seriam confirmadas mais tarde.
No fim do dia, somamos os orçamentos, e quase caímos para trás. Seria praticamente impossível conseguir tanto dinheiro.
Resolvi então pedir ajuda aos meus pais. Foi relativamente fácil convencer mamãe, pois ela gostava de ouvir música tanto quanto eu, mas quando procurei meu pai, a coisa ficou feia. Papai Salvador disse que a velha vitrola que possuíamos funcionava muito bem, e não iria gastar dinheiro com aquela “futilidade”. Mas eu não desisti. Graças, principalmente, ao apoio de minha mãe Marly, “seu Salvador” acabou cedendo, mas concordou somente em financiar a parte da marcenaria. As peças eletrônicas e o toca-discos ficariam por nossa conta, ou seja, por conta do soldo que o Beto recebia do Exército.
Foi uma vitória. Beto calculou que quatro meses de soldo bastariam para comprar todo o material, inclusive o toca-discos, sobrando uns trocados para os gastos de viagens a Itajubá. Compraria o material à medida que o trabalho progredisse.
Quanto ao custo da marcenaria, papai Salvador foi lá pessoalmente falar com o Ezequiel, que concordou em dividir em três prestações. E acertaram o prazo de um mês para aprontar o móvel.
Assim, iniciou-se o processo. Quando Beto voltasse, no sábado, sairíamos para comprar a primeira leva de materiais eletrônicos. Em quatro meses, a eletrola estaria pronta.
No dia seguinte, meu irmão telefonou do quartel, com uma grande notícia: havia conseguido um empréstimo no banco, lá mesmo em Itajubá, e já voltaria com o dinheiro para a compra de todo o material, incluindo o toca-discos importado.
A felicidade existe!
No sábado, nós dois percorremos novamente as ruas do Centro, sob calor escaldante. Entramos na Electronic do Brasil, uma casa tradicional, na rua do Rosário, no Centro, e de lá saímos com dois pacotes grandes embrulhando todo o material, inclusive o mostrador, cujo desenho e cores eu escolhi com muito cuidado. O Beto achava que eu era o único a ter o bom gosto necessário. Ele me considerava um verdadeiro artista, adorava meus desenhos.
Dali, corremos as importadoras até encontrar o toca-discos manual e a caixinha de agulhas de alta fidelidade. Foi a compra mais cara.
Nesse mesmo sábado, Beto começou a complicadíssima montagem do amplificador. Peça por peça, uma soldada à outra com todo o cuidado, para não as danificar com o calor do ferro de soldar. A cada fase da montagem, tudo era checado com todo cuidado e muita paciência.
Beto trabalhou até tarde da noite, tendo a mim como um dedicado assistente. Eu colocava pacientemente o ferro de soldar no suporte, enquanto não estava em uso, buscava nas caixinhas as bobinas e os condensadores e ajeitava o travesseiro nas costas da cadeira, para o Beto trabalhar comodamente. E ousava até fazer umas soldas, mais simples, sob a orientação dele.
Esse trabalho só foi interrompido, a muito custo, pelos apelos da mãe Marly para que fossemos dormir. Recomeçamos na manhã seguinte, domingo, parando apenas para o rápido almoço e prosseguindo até a hora do Beto pegar o ônibus para Itajubá, na rodoviária.
Repetiram-se essas cenas por mais dois fins de semana. Os testes indicavam que tudo estava perfeito. Uma ligação provisória com os alto-falantes confirmaram que o amplificador estava pronto. Mas Beto insistiu em fazer o teste definitivo somente quando tudo fosse instalado na eletrola, que ficaria pronta na próxima semana.
Eu já havia passado três vezes na marcenaria do Ezequiel, para ver o móvel durante a construção. Na primeira vez levei as medidas definitivas dos encaixes, na segunda fui conferir as medidas. E na última, a ida foi apenas uma ansiedade incontida. Eu ficava olhando, admirando, buscando alguma falha, algum senão... Sugeri, nessa última visita, que escurecessem mais o verniz dos pés e dos suportes laterais, para quebrar um pouco a monotonia da cor única...
Sexta-feira, pela manhã, chegou a Kombi da marcenaria trazendo a minha obra-prima. Fiquei todo bobo: não conseguia mais fazer nada a não ser apreciá-la, enquanto minha mãe escolhia o lugar da sala para colocá-la. Beto chegaria no sábado, bem cedinho. Quase não dormi de tanta ansiedade.
Finalmente o grande dia.
Meu irmão chegou também muito ansioso, disse que só pensava nisso durante a viagem. Achou o móvel lindo! Mal tomou o café, que nossa mãe aprontou com todo o carinho, e correu para seu quarto, tirando a farda, jogando sobre a cama a bolsa de viagem, vestindo às pressas a bermuda e correndo para o trabalho de instalar as peças.
O toca-discos encaixou perfeitamente no seu lugar, coincidindo com os furos para os cabos... tudo perfeito. Já no encaixe do amplificador, foi preciso passar um pouco a grosa na lateral interna da madeira. Coisa de milímetro, e o amplificador se encaixou também. Depois, a demorada colocação dos alto-falantes na caixa acústica, com inúmeros parafusinhos para apertar. Depois foi só ligar os fios, e estava tudo pronto para a inauguração tão aguardada.
Eu e Beto havíamos separado dois discos para a estreia: o da orquestra de Glenn Miller, minha preferida, e o da orquestra de Louiz Arcaraz, mais jazzista, preferência do Beto. Mas acabamos mesmo colocando o disco preferido da nossa mãe Marly, que era fã inveterada do Carlos Galhardo, um cantor romântico muito conhecido na época.
Ao ser ligada pela primeira vez, o resultado não poderia ser melhor. A voz do cantor vibrou como nunca se ouviu antes, com os graves e agudos bem sonoros, em perfeito equilíbrio. No entanto, quando olhamos para a mãe Marly, ela estava de “nariz torcido”. Seus ouvidos já se haviam acostumado com o antigo controle de tonalidade (só-grave ou só-agudo), que ela deixava todo voltado para o grave. Adorava aquele som “abafado”, achava lindo. “Aconchegante”, dizia ela...
Essa primeira audição da alta fidelidade foi inesquecível para todos nós. Seguimos colocando os discos das duas orquestras e outros mais, durante o resto do dia. Sorríamos, um para o outro, ao constatarmos que pela primeira vez ouvíamos notas agudas e graves separadamente, dando um realce e uma realidade à música que nunca se havia escutado entes.
Foi uma pena que nessa estreia o som não tenha sido totalmente curtido pela nossa mãe. Se bem que, pouco a pouco, ela foi se habituando e passou a gostar muito.
Nossa eletrola de alta fidelidade funcionou muitos anos naquela casa, enquanto Beto voltou a morar no Rio, primeiro como estudante e depois como professor da IME.
Todo o início da bossa-nova, até a ascensão dos Beatles, nos anos 60, tiveram seus discos tocados nela, mesmo quando já estava obsoleta, quando os sons em estéreo e os CDs tomaram a liderança musical.

Até, na verdade, o falecimento de mamãe Marly e do papai Salvador.


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• HISTÓRIAS DAS COISAS • O acidente




O acidente
Sonynha é levada por seu dono ao hospital das câmeras. Ela não se mexe, não vê nem fala nada, aparentemente não há esperança de salvá-la. Quase sem vida, é imediatamente encaminhada para a emergência.  
É atendida pelo Dr. Rodrigo, um negro muito simpático, baixinho e gorducho, que a examina cuidadosamente, sem pressa alguma, concentradíssimo no que faz. De repente, num gesto preciso, recoloca no lugar uma pecinha solta que coordenava a saída da lente. Depois, vira-se para seus colegas e sorri: “Ela não tem nada”. 
Sonynha pouco a pouco vai despertando da inanição. Vagarosamente, recolhe a sua lente, que antes estava presa e emperrava todos os movimentos do seu corpo. Quando olha o Dr. e percebe estar num hospital, começa a chorar.
“Por que está chorando?” – Pergunta o médico que acabou de salvá-la. “Você está curada, deveria ficar contente!”
Com a voz embargada, ela responde: “Eu queria ter morrido quando fui jogada no chão!” – E antes de voltar a soluçar, balbucia com muita tristeza: “Nunca mais vou poder fotografar... Eu quero morrer!”
O médico procura reanimá-la: “Filha, você não tem nada de mal, foi só um deslocamento simples. Já está curada, pode voltar a fazer suas fotos!”
Mas Sonynha nem sequer ouve a voz do médico, não para de chorar e de se lamentar, mergulhada numa depressão profunda. Diante desse quadro, o Dr. a encaminha ao psicólogo de plantão, que por sorte está disponível naquele momento. 
O psicólogo, Dr. Edmundo Froes, um homem de óculos espessos e uma farta barba ruiva, logo percebe a fragilidade de Sonynha: “Conte o que a preocupa, minha filha... Vai lhe fazer bem.”
Sonynha, aos prantos, só consegue repetir: “Eu queria ter morrido ali no chão! Eu queria ter morrido!” 
“Desabafe, conte para mim o que aconteceu.” – Diz o psicólogo, com voz calma e pausada, enquanto, para acalmá-la, aplica delicadamente uma injeção de óleo. Mas de nada adianta. Através das grossas lentes de seu óculos, vê Sonynha chorar e chorar copiosamente. Então decide permanecer calado, esperando com toda a paciência que ela se acalme.
Depois de alguns minutos, Sonynha sente-se impelida a falar: “Preciso mesmo desabafar...” – Diz, afinal, enxugando as lágrimas com o lenço que Dr. Froes lhe entregara.  
Ajeita-se mais confortavelmente na poltrona, respira fundo e prossegue: “Eu  chamava o meu dono de pai, de tanto que o amava. Ele também gostava de mim.” – Faz uma longa pausa, mas o psicólogo permanece mudo, observando-a. 
Ela prossegue: “Meu pai sempre adorou fotografar comigo, sempre elogiava a definição da minha lente, a nitidez das minhas fotos. Por outro lado, ele sempre foi temperamental e me exigia demais. Eu precisava ficar o tempo todo atenta! Tinha que disparar exatamente no momento da sua ordem, nem um milésimo de segundo a mais!” 
“Como assim?” – Pergunta calmamente o Dr. Froes.
 “Meu pai era fanático por flagrar os gestos e as expressões das pessoas, no momento certo! Por isso detestava quando as pessoas se juntavam num grupo, e ficavam posando para a foto, olhando para nós e sorrindo. Toda vez que isso acontecia, ele me proibia de fotografar! Dizia que esse tipo de foto posada é lugar-comum! Só quando todos se descontraíam é que ele me acionava, para flagrar as expressões.” 
À medida em que falava, Sonynha parecia esquecer da tristeza, empolgando-se com a narrativa.
“Quando meu pai me levava a uma festa, adorava que eu fotografasse os gestos das pessoas. Eu enquadrava as crianças pegando doces, adultos conversando entre si, ou então uma pessoa apontando para o outra... Tudo o que fosse expressivo ele me mandava fotografar. E não eram só pessoas, não! Às vezes saíamos juntos para fotografar paisagens. Ele sempre me obrigava a encontrar um ângulo diferente, inusitado. Meu pai negava-se a fazer a ‘mesmice’ – aquilo que todo mundo faz. Ele odiava o lugar-comum!”
“E você gostava dessa vida? Você concordava com seu pai?”
“Gostava muito” – Responde, visivelmente empolgada. “Eu me sentia muito mais importante do que as outras câmeras, que só faziam fotos posadas, de gente parada e sorrindo... aquela mesmice fácil!”
“Então, pelo que me diz, você e seu dono... ou melhor, seu pai, se admiravam mutuamente.” 
“Nós nos amávamos!”
“Mas você disse ao médico que foi atirada ao chão... Foi seu pai que fez isso?”
Com essa pergunta, Sonynha cai novamente em pranto. Dr. Froes a abraça carinhosamente e diz com muita calma: “Minha filha, para tudo na vida há um motivo. Vamos juntos encontrar esse motivo, só assim você voltará a viver bem...”
Sonynha enxuga as lágrimas com um lenço que o psicólogo lhe ofereceu, e volta a falar: “Eu já disse que meu pai era muito temperamental, não disse?”
“Sim. E daí?“
“Daí, meu pai sempre gostou muito de gatos. Naquele dia, ele viu um dos seus gatinhos subindo no muro do jardim, correu e me buscou no armário, com toda a pressa. Fomos para o jardim e eu vi o gatinho bem no alto do muro, numa posição ótima. Era exatamente a foto que meu pai queria. Mas no momento que ele me disparou, não sei por que eu...” 
Embargada pela emoção, Sonynha não pode terminar a frase. Então o psicólogo completa: “Você não conseguiu fotografar... Foi isso?”
“Foi isso mesmo. Eu não sei o que aconteceu comigo... Quanto mais ele apertava meu disparador, mais eu ficava paralisada... A foto não saía... Acabou que o gatinho desceu do muro e eu não consegui fazer a foto.”
“E o que aconteceu depois?” – Pergunta Dr. Froes, mas já supondo a resposta.
“Ele ficou com muita raiva de mim e me atirou no chão, com toda a força!” – Ao relembrar a cena, recomeça a chorar muito e a se maldizer: “Meu pai nunca mais vai me aceitar! Eu queria ter morrido ali! Eu queria ter morrido!” 
Nesse instante toca o telefone interno. Dr. Froes atende e sussurra algumas palavras, depois volta-se para Sonynha: “O seu pai ainda a ama.” 
Ela leva um susto: “Como pode saber disso?” 
O médico abre a porta do consultório e Sonynha vê entrar, nada menos do que o seu pai. Perplexa, não sabe se sente medo ou alegria. Ao vê-la, o pai a acolhe nas mãos, como num berço, enquanto exclama contente: “Sonynha! Que bom! Você ficou boa!” 
Sonynha fica tão emocionada que só consegue balbuciar: “Pai, você não quer mais me matar?” 
“Matar você? Que bobagem é essa! Eu custei muito a encontrar quem pudesse lhe salvar! Já estava começando a perder a esperança, quando soube deste hospital.” 
 Sonynha olha para o seu dono, atônita, continuando a repetir baixinho consigo mesma: “Pai, você não quer mais me matar?”
Ele responde, comovido: “Você é muito valiosa para mim... Eu quero, sim, é pedir perdão pelo que lhe fiz... ” 
“Pai... você ainda me ama?” 
Ele carinhosamente a aperta contra o peito e depois a guarda no bolso do casaco: “Juntos, nós ainda vamos fazer muitas fotos bonitas!”
Dr. Froes, sorrindo, se despede. Em seguida, carregada pelo pai, Sonynha volta para o seu lar, onde é cuidadosamente guardada na confortável bolsinha de couro, a espera de um novo motivo para ser fotografado.

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• HUMOR & CARTUNS • O efeito

Outra anedota retirada do livro ANEDOTAS POPULARES de Claudio Sendin (Sendino) com anedotas contadas em forma de quadrinhos.
Diz o cronista Sérgio Cabral no seu prefácio:   
  
“… Agora, com este livro, Claudio Sendin descobriu o óbvio. 
….A história do desenho de humor no Brasil é secular e revelou artistas fantásticos, iguais aos melhores que o mundo já produziu. Como não ocorreu a nenhum deles fazer um livro na base das anedotas? Afinal, a anedota é uma das marcas mais fortes do comportamento do brasileiro. A grande vantagem que este Anedotas Populares leva sobre a piada contada é que ela não se esgota na narração: o leitor poderá divertir-se com a conclusão e, depois, com cada detalhe do desenho.
    Não há dúvida: Claudio Sendin descobriu a pólvora. Ou melhor: o óbvio ululante.”

Nesta postagem: ANEDOTA 10 – O efeito.  



• ELES SÃO UNS GATOS! • Aventura na selva

Para os gatos da minha casa, o jardim é uma selva cheia de aventuras!
É preciso estar sempre alerta!

Concentração absoluta! 

Caminhando sorrateiro e lentamente...

Olhando em todas as direções!

Sem deixar que nos avistem!

Nunca se sabe de onde vem o perigo...

• TEMAS DIVERSOS • CONTO • A gratidão do vira-lata




A gratidão do vira-lata
Carlos caminhava de manhã pela orla da praia deserta, quando avistou um cãozinho deitado na areia. Talvez estivesse dormindo e sonhando, pois seu corpo se debatia em repetidas contrações. Carlos desceu da calçada e se aproximou bem lentamente do animal, para não despertá-lo, caso estivesse mesmo dormindo. 
Era um cão vira-lata, de pelos quase da cor da areia, e a suspeita de Carlos tinha fundamento: seu corpo estava tendo convulsões. Parecia debater-se para sustentar a vida, diante da aproximação da morte. Pensando em aliviar seu sofrimento, Carlos agachou-se e o acariciou demoradamente.
O cãzinho não tinha mais força para se levantar, apenas abriu lentamente os olhos de infindável meiguice, enquanto abanava tremulamente o rabo, agradecendo o carinho. Mas por pouco tempo. Após um suspiro demorado, o corpo acalmou-se totalmente. Estava morto. A energia que o fazia viver se desprendera, seguindo o destino evolutivo. Seu corpo era agora somente um aglomerado de células e órgãos, para ser transformado pela natureza. 
Com muita tristeza, Carlos transportou o corpo do cãozinho e o enterrou no quintal de sua casa. Ele jamais esqueceria aquela cena. Emocionava-se cada vez que lembrava do olhar meigo do vira-lata, abanando o rabo, agradecendo o carinho que recebeu nos últimos momentos de vida.  
Porém, o que ele nem sequer suspeitava, começou a ocorrer logo após a morte do animal. A energia que se desprendeu do cão manteve a sua forma, como uma cópia invisível, contendo também todo o sentimento de afeto e gratidão. Tais sentimentos o atraíram para o ser humano que lhe deu alento no final da vida, e como se estivesse ainda vivo, permaneceu ao lado de Carlos, fosse ele aonde fosse.
Cada vez que se lembrava do cãozinho, Carlos reforçava mais o elo que o ligava àquela energia. E a influência que reciprocamente transmitiam não era nada prejudicial, ao contrário, ambos trocavam uma sadia vibração de amor.
Carlos encontrou numa loja de presentes um cãozinho em miniatura, com a expressão alegre e rabinho em pé, parecendo que o abanava. Comprou o brinquedo e com ele fez um pequeno altar no seu quarto. Daí em diante, sempre que olhava a imagem imaginava o cãozinho alegre, em alguma dimensão invisível, mas ali bem próximo...
Sua vida tornou-se mais feliz, pois a tristeza que sentia desde a morte do animalzinho transformara-se em alegria. Imaginava seu amigo sempre presente, em espírito, ao seu lado.

Formado em arquitetura, Carlos trabalhava numa empresa do ramo, e muitas vezes ficava até mais tarde terminando algum projeto. 
Numa dessas noites, ao retornar para casa, como de costume caminhou até o seu carro, estacionado numa rua deserta, ali próxima. Surgiram de repente dois homens armados. “Aí, tio, você perdeu. Passa a chave do carro, celular, todo o dinheiro que tiver, documento, tudo!”
Carlos levou um susto, mas conseguiu controlar-se e logo pôz-se a esvaziar os bolsos. Mas quando olhou novamente os assaltantes, viu seus rostos contraídos. Pareciam sentir medo!
Carlos não estava enganado. Os dois marginais, de repente viram o seu rosto se transformar num enorme cão raivoso, numa fera com dentes ameaçadores. Apavorados, ambos largaram as armas e correrem em disparada, sumindo no escuro da noite.
Carlos ficou atônito, sem conseguir entender por que os dois sentiram tanto medo dele, quando o encacaram de frente. Alisou com as duas mãos todo o rosto, mas nada constatou de anormal, além de que sua barba estava por fazer. 
De volta para casa, enquanto dirigia o carro, lembrou-se do seu cão amigo: “Escapamos dessa!”, disse a si mesmo, e pôz-se a rir. Quando chegou em seu quarto, foi até o altar e demorou-se olhando o bonito cãozinho em miniatura. Talvez por intuição, ficou cismado: “Será que você teve alguma coisa a ver com aquilo?” 

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• INFORMAÇÕES PROFISSIONAIS • Sendino

SENDINO
(Claudio Fabiano de Barros Sendin)

• Diretor de arte publicitário, trabalhou em Criação, nas principais agências do Rio de Janeiro, de São Paulo, e num estúdio de publicidade em Barcelona. 
Durante essa fase, participou da criação de campanhas publicitárias para muitas empresas e instituições importantes, entre elas: Volkswagen, Vasp, Gillette, Coca-Cola, Banco do Brasil, Petrobras, Merrel (Cepacol), Fleischmann Royal, Bradesco Seguros, Prefeitura do Rio de Janeiro. 
Algumas dessas campanhas e peças isoladas receberam medalhas de ouro, prata e bronze, no Prêmio Colunistas.

• Cartunista publicitário, criou personagens bem-sucedidos para publicidade, como Bond Boca, da Cepacol, em parceria com o redator Alexandre Machado, e o Bocão, da Fleischmann Royal, em parceria com a equipe de marketing da Norton. Criou todos os cartuns da campanha Minimania, para a Coca-Cola e Bob’s.

• Cartunista editorial, ilustrou muitas matérias e criou uma capa na revista Domingo (do antigo Jornal do Brasil). Na revista Veja Rio, criou 16 capas, muitas ilustrações de matérias, e ilustrou com charges as crônicas do crítico musical Sérgio Cabral, durante mais de 5 anos. Para o jornal O Globo, criou muitas capas para os Cadernos Vestibular

• Diretor de arte editorial, fez os projetos gráficos de várias revistas corporativas: Hospedagem Brasil (para a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis), Rumos Práticos (para o Conapra – Conselho Nacional de Praticagem), Paissandu Notícias (para o Paissandu Atlético Clube – RJ), Biólogos (para o CRBio-02 – Conselho Regional de Biologia), Revista da Casa de Eapaña (Órgão de divulgação da cultura espanhola no Rio de Janeiro), e Revista do Clube Naval (Para o Clube Naval do Rio de Janeiro).  

• Autor de três livros de cartuns: 
A fábrica e o povo (Massao Ohno – Ricardo Redisch Editores), com cartuns que ilustram um texto de Eça de Queirós.
Viagem de volta, (Repro–SP), com desenhos surrealistas de aviões inspirados nos Beatles, e poemas de Nei Leandro de Castro inspirados nos desenhos e nos Beatles.
Anedotas populares (Editora Taurus), com cartuns em forma de quadrinhos sobre anedotas contadas pelo povo.

• Contato com Sendino, através do e-mail:

sendino.claudio@gmail.com

terça-feira, 26 de novembro de 2019

1 • ARTIGO • O que eu iria pensar de mim?

O QUE EU IRIA PENSAR DE MIM?

Considerações 
pessoais sobre a 
honestidade

Desde os primeiros anos de vida ouvimos falar em honestidade. Exaltá-la faz parte da cultura de todas as sociedades. Criou-se um consenso mundial de que ela deva compor o caráter das pessoas, e por isso todos se dizem honestos, incluindo os condenados por roubo e corrupção, que sempre têm uma justificativa para o crime cometido. Portanto, esse consenso mundial não é suficiente para tornar ninguém honesto. 
Muitos acham que honestidade é somente o respeito às leis. Mas tampouco isso é prova de honestidade. Hábeis corruptos aprendem a praticar seus crimes por entre as brechas das leis, e além disso, existem muitos advogados exímios em defender criminosos, desde que tenham dinheiro suficiente para pagar os honorários.
Por outro lado, as religiões incluem a compaixão e a honestidade como virtudes necessárias aos fiéis. Mas ser devoto fervoroso também não torna ninguém honesto. Os fiéis geralmente mostram-se bondosos e amorosos no interior do templo, durante os atos religiosos, mas no dia a dia agem conforme o nível de consciência que possuem. Quando corruptos, deixam de lado a religião, praticam seus crimes e depois voltam para suas igrejas, sorridentes, certos de que serão devidamente abençoados por Deus.
O que será então honestidade?
Não há dúvida de que ela também inclui o respeito às leis: não roubar nem matar, pois desses dois crimes derivam-se praticamente todos os outros. Matam-se e roubam-se animais, pessoas, ideias, ideais, esperanças e até sonhos. Qualquer delito que imaginemos será, em última análise, um desdobramento do roubo ou assassinato. O estelionato, por exemplo, a rigor é também um roubo, pois quem o pratica se apropria do que não lhe pertence. Mas o conceito de honestidade vai mais além, abrange o cumprimento de todos os compromissos assumidos, tanto documentados quanto verbais.
A honestidade não pode ser imposta nem ensinada através de leis ou de teorias filosóficas. Não é uma atitude legal, política, nem tampouco religiosa. Está enraizada no terreno mais profundo da individualidade humana.
Só existe uma maneira de ensiná-la: através do exemplo. Principalmente às crianças, pois suas mentes, ávidas de aprendizado, observam atentamente os mais velhos. Quando a criança possui uma boa índole, torna-se capaz de assimilar a essência da honestidade, ao ver seus pais nas pequenas atitudes do dia a dia. Seja no devolver o troco que recebeu a mais, ou no cumprir as leis do trânsito ao dirigir. Esses pequenos gestos de honestidade do pai ou da mãe são assimilados com orgulho pelo filho, que assim os vai incorporando à formação do seu caráter. 
Mas não são apenas crianças que aprendem com exemplos. Há também inúmeras pessoas que assimilam a essência da honestidade ao assistirem a fatos marcantes e contundentes. 
Foi o que aconteceu durante uma prova de atletismo –, a Cross Country de Burlada, em Navarra, na Espanha. O atleta espanhol Ivan Fernández Anaya, de 24 anos, corria em segundo lugar, quando viu o queniano Abel Mutai, que estava em primeiro e a 10 metros de vencer a corrida, desacelerar e quase parar, julgando ter cruzado a linha de chegada. Ivan Fernández aproximou-se e, em vez de ultrapassá-lo, alertou o líder sobre o equívoco e, mantendo-se atrás dele, o conduziu gentilmente para confirmar a vitória. 
O público o aplaudiu delirantemente pelo gesto. E quando um repórter lhe perguntou por que não o ultrapassou e venceu a corrida, respondeu: “O que eu iria pensar de mim?”
Com essa atitude exemplar, o atleta espanhol não apenas demonstrou honestidade, mas também solidariedade. Muitos se emocionaram a tal ponto que o exemplo ficou marcado em suas almas. Para esses, foi uma verdadeira lição, um aprendizado para o resto da vida.
É importante ressaltar que, se o corredor espanhol tivesse passado a frente do queniano e ganho a prova, teria sido uma atitude absolutamente legal. Nada o impediria de receber a medalha de ouro. 
Isso demonstra que a honestidade não é só uma questão legal. É sobretudo o ato de considerar o próximo um ser tão valioso quanto nós. E como consequência, tratá-lo com a mesma consideração com que gostaríamos de ser tratados: compreendendo e aceitando seus sentimentos, sem nos apossarmos de seu sonho ou impedirmos que ele se realize, para levarmos vantagem. Ainda que agindo dentro da legalidade. 
Infelizmente, os veículos de comunicação, que bem poderiam prestar um grande serviço à humanidade dando destaque a exemplos desse tipo, fazem justamente o oposto: divulgam maciçamente crimes e corrupção, tornando-se mais geradores de criminalidade do que de honestidade e paz.
A pessoa honesta não faz esforço algum para ser. É, de forma natural e espontânea, mesmo à custa de prejuízos pessoais. A ganância não a seduz, pois já sabe que tanto faz desviar dinheiro dos cofres públicos, quanto passar à frente dos outros sem merecer. Não importa a circunstância, e muito menos a crença religiosa ou política.
Quando alguém possui o caráter verdadeiramente honesto, antes de tomar decisões importantes, sempre se questiona: “O que eu iria pensar de mim?””

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