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sábado, 8 de fevereiro de 2020

* ARTIGO • A primeira eletrola de alta fidelidade

Desenho atual lembrando o primeiro sboço do móvel da eletrola


A primeira
eletrola de alta fidelidade

Sob o calor escaldante do Sol, no verão de 1958, eu e meu irmão Roberto percorríamos a pé as ruas do Centro do Rio, levando uma lista de peças eletrônicas para comprar nas casas especializadas. Só pensar que teríamos finalmente a tão sonhada eletrola de alta fidelidade nos deixava tão felizes, que pouco importava o suor ensopando nossas roupas.
Éramos muito amigos. Eu acabara de fazer quinze anos e cursava a terceira série do ginasial, como era o nome do ensino básico da época. Beto, como eu o chamava, tinha cerca de vinte e oito, já era primeiro-tenente de Engenharia do Exército, locado em Minas Gerais, na cidadezinha de Itajubá. Passava somente os fins de semana em nossa casa, no Rio, onde eu sempre o aguardava com ansiedade, para trocar ideias e saber das novidades de Itajubá.
Beto tinha a mente voltada para a eletrônica. Mais tarde se formaria em engenheiro eletrônico na IME (Escola Militar de Engenharia), onde fez pós-graduação e se tornou  professor. Mas nessa época, em 1958, todo o seu conhecimento se limitava a um cursinho por correspondência recém completado na Continental School, nos EUA. Depois desse curso, passou a colecionar todas as revistas nacionais sobre o assunto, e algumas estrangeiras.
Em nossas demoradas conversas, volta e meia ele deixava de lado as novidades de Itajubá e da vida no quartel, para falar de artigos que lia nas revistas de eletrônica. Eu apreciava muito os radinhos que ele montava como exercício do curso, inclusive um receptor “galena”, que funcionava com uma pedra de cristal e uma agulha.
Certo dia, Beto me mostrou um artigo sobre a grande novidade da época: a alta fidelidade. A reprodução sonora tinha uma qualidade fantástica, muito próxima da realidade, dizia o texto. Esses amplificadores de alta fidelidade ainda não haviam chegado ao comércio, aqui no Brasil, mas na página estava o diagrama completo e a relação de peças necessárias para montar o aparelho.
Sabia que, assim como eu, meu irmão gostava muito de música. Ele ficou tão empolgado, que me contaminou. Decidimos então colocar em prática o projeto, a qualquer custo.
O entusiasmo aumentou ainda mais quando encontramos também o projeto de uma caixa acústica para alto-falantes de alta fidelidade. Nesse tempo, os sons eram todos mono, não se falava em estéreo. Mas somente o fato de trabalhar com dois alto-falantes – um de graves e outro de agudos, já era uma grande novidade, um grande avanço.
Eu copiei o desenho da caixa acústica e, como era muito hábil para o desenho, ampliei o projeto para uma eletrola completa, num móvel único. Ali cabia o toca-discos, o amplificador e a caixa acústica. Fiz um desenho em perspectiva e outro técnico, com todas as medidas. O projeto deixou meu irmão simplesmente maravilhado, aumentando o nosso entusiasmo.
Aproveitando uma manhã de sábado, saímos pelas lojas do Centro fazendo uma tomada de preços de todo o material eletrônico necessário, incluindo o toca-discos, que não poderia ser automático, como se usava na época. Teria que ser do tipo manual, com agulhas de alta fidelidade, que já existiam à venda em algumas poucas lojas de importados. Na volta, fui à marcenaria do seu Ezequiel, próxima de casa, fazer o orçamento da construção da eletrola propriamente dita, toda em madeira.
O projeto não era nada simples. Somente a caixa acústica, teria que ser de madeira maciça e cheia de compartimentos internos, numa espécie de labirinto, com medidas precisas, e toda forrada com lã de vidro. Também os compartimentos para o toca-discos e o amplificador possuíam encaixes, cujas medidas exatas seriam confirmadas mais tarde.
No fim do dia, somamos os orçamentos, e quase caímos para trás. Seria praticamente impossível conseguir tanto dinheiro.
Resolvi então pedir ajuda aos meus pais. Foi relativamente fácil convencer mamãe, pois ela gostava de ouvir música tanto quanto eu, mas quando procurei meu pai, a coisa ficou feia. Papai Salvador disse que a velha vitrola que possuíamos funcionava muito bem, e não iria gastar dinheiro com aquela “futilidade”. Mas eu não desisti. Graças, principalmente, ao apoio de minha mãe Marly, “seu Salvador” acabou cedendo, mas concordou somente em financiar a parte da marcenaria. As peças eletrônicas e o toca-discos ficariam por nossa conta, ou seja, por conta do soldo que o Beto recebia do Exército.
Foi uma vitória. Beto calculou que quatro meses de soldo bastariam para comprar todo o material, inclusive o toca-discos, sobrando uns trocados para os gastos de viagens a Itajubá. Compraria o material à medida que o trabalho progredisse.
Quanto ao custo da marcenaria, papai Salvador foi lá pessoalmente falar com o Ezequiel, que concordou em dividir em três prestações. E acertaram o prazo de um mês para aprontar o móvel.
Assim, iniciou-se o processo. Quando Beto voltasse, no sábado, sairíamos para comprar a primeira leva de materiais eletrônicos. Em quatro meses, a eletrola estaria pronta.
No dia seguinte, meu irmão telefonou do quartel, com uma grande notícia: havia conseguido um empréstimo no banco, lá mesmo em Itajubá, e já voltaria com o dinheiro para a compra de todo o material, incluindo o toca-discos importado.
A felicidade existe!
No sábado, nós dois percorremos novamente as ruas do Centro, sob calor escaldante. Entramos na Electronic do Brasil, uma casa tradicional, na rua do Rosário, no Centro, e de lá saímos com dois pacotes grandes embrulhando todo o material, inclusive o mostrador, cujo desenho e cores eu escolhi com muito cuidado. O Beto achava que eu era o único a ter o bom gosto necessário. Ele me considerava um verdadeiro artista, adorava meus desenhos.
Dali, corremos as importadoras até encontrar o toca-discos manual e a caixinha de agulhas de alta fidelidade. Foi a compra mais cara.
Nesse mesmo sábado, Beto começou a complicadíssima montagem do amplificador. Peça por peça, uma soldada à outra com todo o cuidado, para não as danificar com o calor do ferro de soldar. A cada fase da montagem, tudo era checado com todo cuidado e muita paciência.
Beto trabalhou até tarde da noite, tendo a mim como um dedicado assistente. Eu colocava pacientemente o ferro de soldar no suporte, enquanto não estava em uso, buscava nas caixinhas as bobinas e os condensadores e ajeitava o travesseiro nas costas da cadeira, para o Beto trabalhar comodamente. E ousava até fazer umas soldas, mais simples, sob a orientação dele.
Esse trabalho só foi interrompido, a muito custo, pelos apelos da mãe Marly para que fossemos dormir. Recomeçamos na manhã seguinte, domingo, parando apenas para o rápido almoço e prosseguindo até a hora do Beto pegar o ônibus para Itajubá, na rodoviária.
Repetiram-se essas cenas por mais dois fins de semana. Os testes indicavam que tudo estava perfeito. Uma ligação provisória com os alto-falantes confirmaram que o amplificador estava pronto. Mas Beto insistiu em fazer o teste definitivo somente quando tudo fosse instalado na eletrola, que ficaria pronta na próxima semana.
Eu já havia passado três vezes na marcenaria do Ezequiel, para ver o móvel durante a construção. Na primeira vez levei as medidas definitivas dos encaixes, na segunda fui conferir as medidas. E na última, a ida foi apenas uma ansiedade incontida. Eu ficava olhando, admirando, buscando alguma falha, algum senão... Sugeri, nessa última visita, que escurecessem mais o verniz dos pés e dos suportes laterais, para quebrar um pouco a monotonia da cor única...
Sexta-feira, pela manhã, chegou a Kombi da marcenaria trazendo a minha obra-prima. Fiquei todo bobo: não conseguia mais fazer nada a não ser apreciá-la, enquanto minha mãe escolhia o lugar da sala para colocá-la. Beto chegaria no sábado, bem cedinho. Quase não dormi de tanta ansiedade.
Finalmente o grande dia.
Meu irmão chegou também muito ansioso, disse que só pensava nisso durante a viagem. Achou o móvel lindo! Mal tomou o café, que nossa mãe aprontou com todo o carinho, e correu para seu quarto, tirando a farda, jogando sobre a cama a bolsa de viagem, vestindo às pressas a bermuda e correndo para o trabalho de instalar as peças.
O toca-discos encaixou perfeitamente no seu lugar, coincidindo com os furos para os cabos... tudo perfeito. Já no encaixe do amplificador, foi preciso passar um pouco a grosa na lateral interna da madeira. Coisa de milímetro, e o amplificador se encaixou também. Depois, a demorada colocação dos alto-falantes na caixa acústica, com inúmeros parafusinhos para apertar. Depois foi só ligar os fios, e estava tudo pronto para a inauguração tão aguardada.
Eu e Beto havíamos separado dois discos para a estreia: o da orquestra de Glenn Miller, minha preferida, e o da orquestra de Louiz Arcaraz, mais jazzista, preferência do Beto. Mas acabamos mesmo colocando o disco preferido da nossa mãe Marly, que era fã inveterada do Carlos Galhardo, um cantor romântico muito conhecido na época.
Ao ser ligada pela primeira vez, o resultado não poderia ser melhor. A voz do cantor vibrou como nunca se ouviu antes, com os graves e agudos bem sonoros, em perfeito equilíbrio. No entanto, quando olhamos para a mãe Marly, ela estava de “nariz torcido”. Seus ouvidos já se haviam acostumado com o antigo controle de tonalidade (só-grave ou só-agudo), que ela deixava todo voltado para o grave. Adorava aquele som “abafado”, achava lindo. “Aconchegante”, dizia ela...
Essa primeira audição da alta fidelidade foi inesquecível para todos nós. Seguimos colocando os discos das duas orquestras e outros mais, durante o resto do dia. Sorríamos, um para o outro, ao constatarmos que pela primeira vez ouvíamos notas agudas e graves separadamente, dando um realce e uma realidade à música que nunca se havia escutado entes.
Foi uma pena que nessa estreia o som não tenha sido totalmente curtido pela nossa mãe. Se bem que, pouco a pouco, ela foi se habituando e passou a gostar muito.
Nossa eletrola de alta fidelidade funcionou muitos anos naquela casa, enquanto Beto voltou a morar no Rio, primeiro como estudante e depois como professor da IME.
Todo o início da bossa-nova, até a ascensão dos Beatles, nos anos 60, tiveram seus discos tocados nela, mesmo quando já estava obsoleta, quando os sons em estéreo e os CDs tomaram a liderança musical.

Até, na verdade, o falecimento de mamãe Marly e do papai Salvador.


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sendino.claudio@gmail.com

2 comentários:

Leo Padilha disse...

Boa noite estimado Tio.
Que felicidade em ver essa história do meu amado e saudoso pai.
Ele realmente era uma pessoa extraordinária que me orgulho muito.
Lembrei muito dele ao ver o filme estrelas além do tempo.
Ele fez algo bem parecido com aquilo no Brasil na mesma época.
Muito obrigado por nos brindar com essa grande história.

de seu sobrinho Leonardo Padilha.

walterdelucia disse...

Claudio,
Parabéns pela linda história de nossos tempo. No decorrer da narrativa cada detalhe ganhou vida e passei a ver a velha vila da Paula Brito, sua casa e o jovem "milequinze", apelido carinhosamente dado pelos colegas. Como amigos de infância foi fácil de ver como agia, sua empolgação aos quinze anos, talvez mais perfeccionista e ansioso do que agora. Muito obrigado pela lembrança de nossa inocente juventude e os bons tempos do Andaraí. Mais uma vez parabéns, muito linda!