Desenho atual lembrando o primeiro sboço do móvel da eletrola |
A primeira
eletrola de alta fidelidade
eletrola de alta fidelidade
Sob o calor escaldante do Sol, no verão de 1958, eu e meu irmão
Roberto percorríamos a pé as ruas do Centro do Rio, levando uma lista de peças
eletrônicas para comprar nas casas especializadas. Só pensar que teríamos
finalmente a tão sonhada eletrola de alta fidelidade nos deixava tão felizes,
que pouco importava o suor ensopando nossas roupas.
Éramos muito amigos. Eu acabara de fazer quinze anos e cursava a
terceira série do ginasial, como era o nome do ensino básico da época. Beto,
como eu o chamava, tinha cerca de vinte e oito, já era primeiro-tenente de
Engenharia do Exército, locado em Minas Gerais, na cidadezinha de Itajubá.
Passava somente os fins de semana em nossa casa, no Rio, onde eu sempre o
aguardava com ansiedade, para trocar ideias e saber das novidades de Itajubá.
Beto tinha a mente voltada para a eletrônica. Mais tarde se
formaria em engenheiro eletrônico na IME (Escola Militar de Engenharia), onde
fez pós-graduação e se tornou professor.
Mas nessa época, em 1958, todo o seu conhecimento se limitava a um cursinho por
correspondência recém completado na Continental School, nos EUA. Depois
desse curso, passou a colecionar todas as revistas nacionais sobre o assunto, e
algumas estrangeiras.
Em nossas demoradas conversas, volta e meia ele deixava de lado as
novidades de Itajubá e da vida no quartel, para falar de artigos que lia nas
revistas de eletrônica. Eu apreciava muito os radinhos que ele montava como
exercício do curso, inclusive um receptor “galena”, que funcionava com uma
pedra de cristal e uma agulha.
Certo dia, Beto me mostrou um artigo sobre a grande novidade da
época: a alta fidelidade. A reprodução sonora tinha uma qualidade fantástica,
muito próxima da realidade, dizia o texto. Esses amplificadores de alta
fidelidade ainda não haviam chegado ao comércio, aqui no Brasil, mas na página
estava o diagrama completo e a relação de peças necessárias para montar o
aparelho.
Sabia que, assim como eu, meu irmão gostava muito de música. Ele
ficou tão empolgado, que me contaminou. Decidimos então colocar em prática o
projeto, a qualquer custo.
O entusiasmo aumentou ainda mais quando encontramos também o
projeto de uma caixa acústica para alto-falantes de alta fidelidade. Nesse
tempo, os sons eram todos mono, não se falava em estéreo. Mas somente o fato de
trabalhar com dois alto-falantes – um de graves e outro de agudos, já era uma
grande novidade, um grande avanço.
Eu copiei o desenho da caixa acústica e, como era muito hábil para
o desenho, ampliei o projeto para uma eletrola completa, num móvel único. Ali
cabia o toca-discos, o amplificador e a caixa acústica. Fiz um desenho em
perspectiva e outro técnico, com todas as medidas. O projeto deixou meu irmão
simplesmente maravilhado, aumentando o nosso entusiasmo.
Aproveitando uma manhã de sábado, saímos pelas lojas do Centro
fazendo uma tomada de preços de todo o material eletrônico necessário,
incluindo o toca-discos, que não poderia ser automático, como se usava na
época. Teria que ser do tipo manual, com agulhas de alta fidelidade, que já
existiam à venda em algumas poucas lojas de importados. Na volta, fui à
marcenaria do seu Ezequiel, próxima de casa, fazer o orçamento da construção da
eletrola propriamente dita, toda em madeira.
O projeto não era nada simples. Somente a caixa acústica, teria
que ser de madeira maciça e cheia de compartimentos internos, numa espécie de
labirinto, com medidas precisas, e toda forrada com lã de vidro. Também os
compartimentos para o toca-discos e o amplificador possuíam encaixes, cujas
medidas exatas seriam confirmadas mais tarde.
No fim do dia, somamos os orçamentos, e quase caímos para trás.
Seria praticamente impossível conseguir tanto dinheiro.
Resolvi então pedir ajuda aos meus pais. Foi relativamente fácil
convencer mamãe, pois ela gostava de ouvir música tanto quanto eu, mas quando
procurei meu pai, a coisa ficou feia. Papai Salvador disse que a velha vitrola
que possuíamos funcionava muito bem, e não iria gastar dinheiro com aquela
“futilidade”. Mas eu não desisti. Graças, principalmente, ao apoio de minha mãe
Marly, “seu Salvador” acabou cedendo, mas concordou somente em financiar a
parte da marcenaria. As peças eletrônicas e o toca-discos ficariam por nossa
conta, ou seja, por conta do soldo que o Beto recebia do Exército.
Foi uma vitória. Beto calculou que quatro meses de soldo bastariam
para comprar todo o material, inclusive o toca-discos, sobrando uns trocados
para os gastos de viagens a Itajubá. Compraria o material à medida que o
trabalho progredisse.
Quanto ao custo da marcenaria, papai Salvador foi lá pessoalmente
falar com o Ezequiel, que concordou em dividir em três prestações. E acertaram
o prazo de um mês para aprontar o móvel.
Assim, iniciou-se o processo. Quando Beto voltasse, no sábado,
sairíamos para comprar a primeira leva de materiais eletrônicos. Em quatro
meses, a eletrola estaria pronta.
No dia seguinte, meu irmão telefonou do quartel, com uma grande
notícia: havia conseguido um empréstimo no banco, lá mesmo em Itajubá, e já
voltaria com o dinheiro para a compra de todo o material, incluindo o
toca-discos importado.
A felicidade existe!
No sábado, nós dois percorremos novamente as ruas do Centro, sob
calor escaldante. Entramos na Electronic do Brasil, uma casa tradicional, na
rua do Rosário, no Centro, e de lá saímos com dois pacotes grandes embrulhando
todo o material, inclusive o mostrador, cujo desenho e cores eu escolhi com
muito cuidado. O Beto achava que eu era o único a ter o bom gosto necessário.
Ele me considerava um verdadeiro artista, adorava meus desenhos.
Dali, corremos as importadoras até encontrar o toca-discos manual
e a caixinha de agulhas de alta fidelidade. Foi a compra mais cara.
Nesse mesmo sábado, Beto começou a complicadíssima montagem do
amplificador. Peça por peça, uma soldada à outra com todo o cuidado, para não
as danificar com o calor do ferro de soldar. A cada fase da montagem, tudo era
checado com todo cuidado e muita paciência.
Beto trabalhou até tarde da noite, tendo a mim como um dedicado
assistente. Eu colocava pacientemente o ferro de soldar no suporte, enquanto
não estava em uso, buscava nas caixinhas as bobinas e os condensadores e
ajeitava o travesseiro nas costas da cadeira, para o Beto trabalhar
comodamente. E ousava até fazer umas soldas, mais simples, sob a orientação
dele.
Esse trabalho só foi interrompido, a muito custo, pelos apelos da
mãe Marly para que fossemos dormir. Recomeçamos na manhã seguinte, domingo,
parando apenas para o rápido almoço e prosseguindo até a hora do Beto pegar o
ônibus para Itajubá, na rodoviária.
Repetiram-se essas cenas por mais dois fins de semana. Os testes
indicavam que tudo estava perfeito. Uma ligação provisória com os alto-falantes
confirmaram que o amplificador estava pronto. Mas Beto insistiu em fazer o
teste definitivo somente quando tudo fosse instalado na eletrola, que ficaria
pronta na próxima semana.
Eu já havia passado três vezes na marcenaria do Ezequiel, para ver
o móvel durante a construção. Na primeira vez levei as medidas definitivas dos
encaixes, na segunda fui conferir as medidas. E na última, a ida foi apenas uma
ansiedade incontida. Eu ficava olhando, admirando, buscando alguma falha, algum
senão... Sugeri, nessa última visita, que escurecessem mais o verniz dos pés e
dos suportes laterais, para quebrar um pouco a monotonia da cor única...
Sexta-feira, pela manhã, chegou a Kombi da marcenaria trazendo a
minha obra-prima. Fiquei todo bobo: não conseguia mais fazer nada a não ser
apreciá-la, enquanto minha mãe escolhia o lugar da sala para colocá-la. Beto
chegaria no sábado, bem cedinho. Quase não dormi de tanta ansiedade.
Finalmente o grande dia.
Meu irmão chegou também muito ansioso, disse que só pensava nisso
durante a viagem. Achou o móvel lindo! Mal tomou o café, que nossa mãe aprontou
com todo o carinho, e correu para seu quarto, tirando a farda, jogando sobre a
cama a bolsa de viagem, vestindo às pressas a bermuda e correndo para o
trabalho de instalar as peças.
O toca-discos encaixou perfeitamente no seu lugar, coincidindo com
os furos para os cabos... tudo perfeito. Já no encaixe do amplificador, foi
preciso passar um pouco a grosa na lateral interna da madeira. Coisa de
milímetro, e o amplificador se encaixou também. Depois, a demorada colocação
dos alto-falantes na caixa acústica, com inúmeros parafusinhos para apertar.
Depois foi só ligar os fios, e estava tudo pronto para a inauguração tão
aguardada.
Eu e Beto havíamos separado dois discos para a estreia: o da
orquestra de Glenn Miller, minha preferida, e o da orquestra de Louiz Arcaraz,
mais jazzista, preferência do Beto. Mas acabamos mesmo colocando o disco preferido
da nossa mãe Marly, que era fã inveterada do Carlos Galhardo, um cantor
romântico muito conhecido na época.
Ao ser ligada pela primeira vez, o resultado não poderia ser
melhor. A voz do cantor vibrou como nunca se ouviu antes, com os graves e
agudos bem sonoros, em perfeito equilíbrio. No entanto, quando olhamos para a
mãe Marly, ela estava de “nariz torcido”. Seus ouvidos já se haviam acostumado
com o antigo controle de tonalidade (só-grave ou só-agudo), que ela deixava
todo voltado para o grave. Adorava aquele som “abafado”, achava lindo.
“Aconchegante”, dizia ela...
Essa primeira audição da alta fidelidade foi inesquecível para
todos nós. Seguimos colocando os discos das duas orquestras e outros mais,
durante o resto do dia. Sorríamos, um para o outro, ao constatarmos que pela
primeira vez ouvíamos notas agudas e graves separadamente, dando um realce e
uma realidade à música que nunca se havia escutado entes.
Foi uma pena que nessa estreia o som não tenha sido totalmente
curtido pela nossa mãe. Se bem que, pouco a pouco, ela foi se habituando e
passou a gostar muito.
Nossa eletrola de alta fidelidade funcionou muitos anos naquela
casa, enquanto Beto voltou a morar no Rio, primeiro como estudante e depois
como professor da IME.
Todo o início da bossa-nova, até a ascensão dos Beatles, nos anos
60, tiveram seus discos tocados nela, mesmo quando já estava obsoleta, quando
os sons em estéreo e os CDs tomaram a liderança musical.
Até, na verdade, o falecimento de mamãe Marly e do papai Salvador.
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