PITINHA COR DE CANELA
Pitinha é pequenina, tem de altura pouco mais que um polegar, uma tampinha branca toda furadinha, e o resto do corpo transparente. Por isso, depois de cheia de canela em pó, fica da cor da canela.
Ela foi parar ali, nem sabe como. Só sabe que adorava o seu trabalho diário no grande evento do Café da Manhã. Atuava na arena, diante de um grande público, pulverizando a sua canela sobre a banana amassada. Era sempre aplaudida pela destreza em espalhar o pó uniformemente por toda a superfície, antes que a colher, protagonista do evento, viesse com a granola. Quando esvaziava, a colher tornava a enchê-la de canela até a borda. Pitinha não perdia uma apresentação sequer, e já se tornara uma personagem conhecida do grande público do Café da Manhã.
Tudo isso são recordações que não saem da sua cabeça. Eram tempos muito felizes. Mas de repente, sem nenhum aviso, um pote amarelo de canela, comprado no supermercado, foi posto ao seu lado. Disseram apenas que a venda de canela a varejo havia acabado, e dali em diante seria usada uma marca comercial. E ponto final.
Pitinha, desolada, ao ver o pote amarelo ser levado para fazer o trabalho que ela sempre fez, entrou em profunda depressão. Agora ela passa dias e noites na prateleira, vazia, imóvel, sem ter o que fazer, e ainda tem que se dar por muito feliz de não ter sido jogada no lixo. Nunca mais a canela, nunca mais a banana amassada, nunca mais os aplausos do público.
Sua vida, desde a vinda do Amarelo, tornou-se completamente inútil. A única esperança que ainda lhe restou é que o pote Amarelo algum dia se esgote, e a canela volte a ser vendida no varejo.
Toda manhã, o Amarelo é levado para o Café da Manhã, e quando termina a apresentação, novamente colocado ao seu lado. Os dois ficam a tarde e a noite lado a lado, sem trocarem uma palavra. A cena se repete por semanas, e nada de se esgotar a canela do Amarelo.
Mas hoje, de repente ele resolve puxar assunto: “Antes de mim era você quem fazia esse trabalho, não é?”
Pitinha estremece. Há muitas semanas ninguém falava nada com ela, por isso fica confusa: “Hem? O que disse?”
Amarelo é muito amável: “Eu já ouvi falar muito em você. O público lá do estádio até reclamou a sua presença! Você é muito querida!”
“É mesmo?” – Pitinha chega a esboçar um sorriso.
“É sim. E eu sei o que houve, você era de uso contínuo, e acabou-se a venda de canela no varejo, já me contaram.”
Pitinha sente que o amarelo deseja se aproximar, e na situação em que ela se encontra, uma amizade lhe faria muito bem. Por isso, responde sinceramente: “É verdade. Eu adorava o meu trabalho, mas acho que chegou o meu fim. Já perdi a esperança, o espetáculo agora é todo seu.”
“Mas tem uma coisa, eu não sou recarregável, como você.”
“Ah, não? Quer dizer que quando acaba a sua canela...” – Pitinha deixa frase incompleta de propósito.
“Não morro não, eu me incorporo em outro pote. Quem sabe, no pote novo que seu dono comprar?”
“Ah...” – Ela balbucia, desiludida. Agora acabou de vez a esperança de conseguir canela quando o Amarelo se esgotar. Mas responde, fingindo alegria: “Que legal!” – E continua: “Então você tem sempre uma casa para morar! Não depende de seu dono encher seu corpo de canela! Isso é muito bom!”
Apesar de tudo, os dois ficam amigos. Dali em diante, sempre que Amarelo volta de sua apresentação, conta as novidades para a amiga. Diz que o público já se acostumou com ele e também o aplaude, o que provoca em Pitinha uma pontinha de inveja, mas que ela logo transforma em admiração: “Ah, sinal que você está atuando muito bem!”
Semanas e semanas vão passando.
Mas um dia ele voltou cabisbaixo: “Hoje eu dei uma vacilada! Joguei canela fora da banana, na borda do prato. Caiu até na toalha! Foi um vexame, o público vaiou...”
“Ah, coitadinho! Mas amanhã você vai ser novamente aplaudido, o público esquece!”
Pitinha estava sendo sincera. Durante esse tempo de convívio, já se convencera de que seria sempre conservada, seu dono jamais a jogaria no lixo. A amizade do Amarelo, portanto, era tudo o que tinha, e bastava para fazê-la feliz. Pitinha começava a compreender que uma amizade é tudo na vida.
Mas chegou o dia do Amarelo se esgotar: “Acabo de usar meu último restinho de canela. Agora estou completamente vazio.” – E calou-se.
“Oh, meu Deus!” – Exclama Pitinha, aflita – “O que vai ser de você?”
Por coincidência, neste exato momento abre-se a porta do armário e um outro pote, também amarelo, o substitui.
Por um momento Pitinha fica ainda mais assustada, mas a voz do novo Amarelo a tanquiliza: “Olá, Pitinha! Sou eu de novo!”
“Você trocou de corpo! Como é que pode?”
“Foi como eu lhe disse. Seu dono comprou um novo pote e eu passei para o seu corpo! É sempre assim, isso é normal na minha espécie.”
A amizade continua, mais firme do que antes. Correm os meses e a troca de corpos sempre se repete, mas Pitinha já não se assusta. Sabe que o seu amigo Amarelo sempre vai para o pote novo. Aquilo se torna natural e rotineiro.
Porém, certo dia, enquanto o Amarelo se apresentava no Café da Manhã, eis que acontece o que Pitinha já achava impossível: é colocado ao seu lado um saco cheio de canela, comprada no varejo!
Pitinha tem um choque emocional. Não sabe se fica feliz ou infeliz. A amizade com o Amarelo já era sólida, não concebia mais viver distante dele. Por outro lado, a volta aos velhos tempos dos aplausos do público, também a deixa fascinada. Emoções adormecidas, agora novamente despertam.
Assim que o Amarelo volta, ao ver o saco de canela, compreende tudo. Mas não se abala. Calmamente, dirige-se à amiguinha: “Pitinha querida, você agora vai reinar novamente. É o que sempre quis, não é?”
Pitinha desaba a chorar, e tanto, que nem pode falar.
Amarelo lhe diz, ternamente: “Querida, não chore, eu sei que suas lágrimas são porque preza muito a nossa amizade. Mas é a sua vida que retorna! É motivo de felicidade!”
Pitinha, com esforço, consegue dizer: “Eu não quero lhe perder! Você é muito importante para mim! Eu morreria de tédio se não fosse a sua amizade!”
“Mas, querida, nós vamos continuar amigos! Vou para o supermercado, pertencerei a outra família, mas a sua lembrança nunca vai se apagar!”
Amarelo continua a atuar por mais alguns dias, até se esgotar completamente. Mas dessa vez não há outro pote para substituí-lo. Em vez disso, uma colher vai retirando a canela do saco de plástico e colocando no corpo transparente de Pitinha, até ela ficar da cor da canela, como há tanto tempo não ficava. Depois é levada diretamente para o Café da Manhã, onde o prato de banana amassada a espera, como nos velhos tempos. Logo que começa a atuar o público a reconhece, e aplaude calorosamente. Emocionada, Pitinha quase erra, mas logo vê que não perdeu sua prática, e faz o trabalho com perfeição.
Na volta, não encontra mais o Amarelo. Como ele próprio avisou, foi para o supermercado, num novo corpo, talvez para uma nova casa, uma nova família. Mas assim mesmo, a alegria da reestreia é superada pela saudade do amigo, e ela desanda a chorar. Aos poucos, com muita dificuldade, agarra-se à ideia de que esse é o seu destino, é o que sempre sonhou. Precisa se conformar somente com a lembrança do amigo. Acaba se consolando, ao imaginar que o amigo Amarelo, seja lá onde estiver, a terá sempre na memória. E aprende que a amizade não acaba com a distância.
O tempo passa, com atuações cada vez mais brilhantes de Pitinha no evento do Café da Manhã. Ela agora é uma artista consagrada e querida do grande público, que passa a apelidá-la de Pitinha Cor de Canela.
Cada vez que Pitinha Cor de Canela volta para sua prateleira, lembra-se do amigo Amarelo, e conversa com ele mentalmente, sempre desejando que ele seja muito feliz na nova residência.
Já três sacos de canela foram comprados até agora, sendo que cada um dá para quatro recargas, ou seja, dois meses de apresentações diárias no evento. O terceiro esgotou-se há doze dias, portanto Pitinha está quase vazia.
Hoje como sempre, esmera-se na apresentação e é muito aplaudida. Volta cansada e vai para o seu aconchego na prateleira do armário. Amanhã chegará o novo saco de canela para reabastecê-la. Passa uma noite tranquila, sonhando com o amigo distante.
Quando amanhece, Pitinha volta-se para trás e nada de enxergar o novo saco de canela. Era certo de encontrá-lo, pois está mais do que na hora de ser recarregada. Mas, de repente, uma surpresa totalmente inesperada: um pote amarelo é colocado ao seu lado. “Meu Deus! Não é possível! Não acredito no que vejo!” – Diz para si mesma, enquanto ouve aquela voz inesquecível: “Olá, Pitinha. Sou eu de novo!”
Acredite ou não, o seu amigo Amarelo está de volta. Pitinha chora muito, mas desta vez de felicidade: “Que bom! Que bom que você voltou!” – E os dois se abraçam demoradamente. Agora mais calma, pergunta como ele fez para conseguir voltar no momento certo da sua recarga. Amarelo diz que foi uma mistura de intuição com coincidência.
Explica: “Eu vivia na casa de uma família, longe daqui. Mas vivia pensando em você, e ontem, quando me esvaziei, tive a intuição de que seu dono iria ao supermercado comprar mais sacos de canela. E por coincidência, não havia canela a varejo nesse dia. Eu então me transportei para um dos potes de lá. Fiquei na prateleira, rezando para seu dono me escolher...”
“Você está brincado. Quer dizer que meu dono escolheu você no meio de todos os potes amarelos?” – Pergunta Pitinha, verdadeiramente deslumbrada.
“Isso mesmo! Foram duas coincidências: a de faltar canela no varejo e a de seu dono me escolher!”
“Coincidências não existem!” – Pitinha afirma, convicta. “Foi atração mental!” – Nesse instante ela aprende que as amizades se atraem.
Dali em diante, passam a viver períodos alternados. Quando há canela vendida a varejo, ela se apresenta todos os dias no Café da Manhã. Quando falta, o amigo sempre arranja um jeito de aparecer.
Pitinha Cor de Canela e o Amarelo, agora também famoso, são amigos inseparáveis.
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ela será muito bem-vinda.
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2 comentários:
Encantador, emocionante. Mergulhei de corpo e alma na estória e foi um momento lindo. Parabéns.
que lindo!!! Suave, elegante, sensível!!! Parabéns, amigo
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