HISTÓRIAS DAS COISAS – 19
A FRATERNIDADE DAS GARRAFAS VERDES
Aurora morava na prateleira de baixo da geladeira. Tinha plena consciência de sua grande utilidade e beleza para os humanos; sabia o quanto seu líquido era saudável, além de muito saboroso, e que seu corpo, lindo de cor e de forma, ainda por cima economizava espaço, facilitando a arrumação no local onde estivesse. Aurora muito se orgulhava de suas qualidades, mas, por outro lado, sabia que estava predestinada a uma vida curta. Seu conteúdo, muito consumido, logo se esgotaria. Depois –, se é que haveria o depois –, viria o desconhecido... E isso lhe dava medo. Que destino teria quando o seu conteúdo acabasse? Seria reaproveitada? Quebrada e depois varrida, como um lixo vulgar? Aurora tinha horror só de imaginar.
Agora, que seu líquido estava no fim, lembrava-se constantemente do início da vida, transportada no caminhão juntamente com centenas de outras iguais a ela, até ser colocada na gôndola de um supermercado, onde permaneceu longas semanas.
O tempo que passou no supermercado lhe deu maturidade. Observou que existiam inúmeros tipos de garrafas de sucos, cada uma com seu rótulo característico, com formatos e cores diferentes, vindas de todos os cantos. Conviveu, não somente com elas, mas também com garrafas de inúmeras espécies de bebidas. Durante esse tempo, observou a atitude dos humanos que faziam compras, e notou que eles buscavam sempre as bebidas alcoólicas, nas prateleiras das cervejas, vinhos e destilados, pouco saudáveis para seus corpos. Os que preferiam as garrafas de sucos, como ela, eram a minoria, e quase todos idosos.
Talvez por esse motivo, Aurora desenvolveu uma aversão aos líquidos alcoólicos. Mesmo aos vinhos, com quem deveria ter bastante afinidade. Eles se julgavam tão importantes e eram tão esnobes, que dava nojo. Nas raras vezes em que ficaram na prateleira próxima, os vinhos a trataram mal: cochicharam entre si, depois a olharam e riram com desdém. Mas Aurora nunca se abateu. Possuía uma forte autoestima, plena consciência de sua importância, de seu conteúdo saudável, e sobretudo de sua beleza.
Ouvia sempre elogios dos humanos, não somente pelo sabor de seu suco, mas pela beleza de seu corpo, do seu formato inusitado e charmoso. E foi justamente depois de um desses comentários elogiosos, que ela foi levada para o carrinho de compras, por um casal de idosos.
Aurora pensava essas coisas, acomodada em seu ninho, no interior da porta da geladeira. Essas lembranças evitavam aquele pensamento horrível sobre a lixeira, sobre o seu fim. O medo do desconhecido sempre existiu, apesar do seu amor próprio e da sua crença em Deus.
Ali na geladeira, as melhores amigas de Aurora eram as gêmeas –, duas garrafas de água, com quem convivia diariamente, e até fazia parceria, pois os humanos da casa preferiam o suco diluído com uma parte de água. As gêmeas eram ambas muito simpáticas, conversadeiras, extrovertidas e muito engraçadas. Uma delas sempre permanecia no fundo da geladeira, enquanto a outra estava em uso. Elas viviam elogiando o “verde esmeralda lindíssimo” do corpo de Aurora, que devolvia o elogio: “E vocês são branquinhas e transparentes como a paz!”
Mantinha assim um clima sempre amoroso entre elas. Numa das últimas conversas, Aurora deixou transparecer sua preocupação com o término de seu conteúdo. Seu suco estava chegando ao fim, e com ele, quem sabe, a sua vida...
“Não se preocupe com isso, menina!”, – Respondeu a gêmea, alegremente. “Você daqui vai direto para a comunidade! Pode ter certeza!”
Foi a primeira vez que Aurora ouviu falar na comunidade.
“Que comunidade é essa?” – Perguntou, muito curiosa e vendo nascer uma esperança de continuar sua vida.
A gêmea contou tudo o que sabia a respeito: que era uma comunidade religiosa bem distante dali, formada só por garrafas verdes, iguais a ela. E sempre que uma garrafa do seu tipo ficava vazia, surgia um santo que a levava para morar lá.
“Pode ficar tranquila, querida” – Afirmou, convicta, a garrafa de água. – “Quando chegar o seu dia você será chamada!”.
Aurora encheu-se de felicidade e esperança.
Pensou em seguida: “Até que valeu a minha dedicação! O prêmio pelo meu saudável suco de uva está por chegar!” – E agradeceu à gêmea pela valiosa informação.
A vida prosseguiu, com Aurora diminuindo seu conteúdo a cada dia. Até que, numa noite, o seu velho dono bebeu o último gole. Nessa noite Aurora não voltou para a geladeira; foi deixada sobre a pia da cozinha.
Voltou a sentir medo: “Será que a história da gêmea foi só uma invenção para me consolar? Será que na verdade vão me jogar na lixeira?” – Tais pensamentos não a deixavam dormir. Apegou-se então fortemente à sua religiosidade: “Nunca fiz mal a ninguém, e sempre cumpri muito bem meu trabalho. Deus há de me ajudar!” – Isso lhe trouxe a paz, e finalmente adormeceu.
Despertou com a presença de alguém que a segurava, mas não conseguia identificar quem era. Sentiu apenas que duas mãos a carregavam para a torneira da pia. Ali, foi lavada até ficar absolutamente limpa.
Ouviu então uma voz que nunca ouvira antes: “Aurora, você está passando pelo ritual sagrado da Fraternidade das Garrafas Verdes. Ficará livre de todas as coisas que a prendem ao mundo.” – As mãos então abraçaram seu corpo.
“Vai ter início a cerimônia da Tirada dos Rótulos.”
Em seguida, as mãos descolaram os rótulos que continham a sua marca e demais informações. Terminado esse trabalho, a voz lhe comunicou: “Agora você está livre de todos os rótulos, para se dedicar inteiramente à fraternidade.”
Aurora foi guiada por uma longa estrada até uma região distante, na prateleira de fundo da churrasqueira da casa, onde vivia a comunidade chamada Fraternidade das Garrafas Verdes.
Foi recebida com muito carinho por todas, e após as boas-vindas a conduziram ao seu lugar, já reservado. As Garrafas Verdes possuem todas o mesmo formato de corpo da Aurora e o mesmo translúcido verde esmeralda. Uma delas falou:
“Meu nome é Rair. A que está à sua direita chama-se Gahr e a da esquerda Mhun. O seu nome agora passará a ser Aura.”
“Aura... Adorei!”
A vida na comunidade foi para Aura uma lição de harmonia. Todas as garrafas permaneciam quietas e tranquilas, formando uma enorme fila que ocupava toda a extensão da prateleira de mogno escuro, no fundo da churrasqueira. Aura sabia ser apenas uma delas, passando os dias imóvel e em completo silêncio, como as outras, mas feliz como nunca se sentira antes.
As garrafas tinham como única atividade a mentalização do bem para todas as garrafas do planeta, sem distinção de raça ou de cor. Todas muito bonitas, decoravam permanentemente o local. Os humanos que visitavam a churrasqueira encantavam-se ao vê-las, todas do mesmo tamanho e de um translúcido verde esmeralda.
Mas elas sabiam que a qualquer momento poderiam ser requisitadas, bastando para isso que algum humano precisasse de seu trabalho. Estariam sempre dispostas, pois o lema de todas era “sempre ser útil aos humanos”.
Depois que Aura passou a fazer parte da Fraternidade, a quantidade de garrafas aumentou bastante, apesar de que nunca imaginaram uma possível superlotação. Bonitas e úteis como eram, estavam certas de que seriam constantemente requisitadas pelos humanos.
Entretanto, isso não aconteceu. Pelo contrário, chegaram tantas garrafas novas, que todo o espaço disponível já estava prestes a se completar.
Num dia, a Prefeita da Região, ao ver a prateleira da churrasqueira inteiramente tomada pelas garrafas verdes, esqueceu-se da beleza delas e da vibração que emanavam. Teve um ímpeto de loucura e berrou: “Fora! Quero todas essas garrafas fora daqui! Joguem todas no lixo!!!” – E saiu esbravejando aos seus assistentes para que cumprissem a ordem a partir do dia seguinte.
A comunidade estremeceu. Na Fraternidade das Garrafas Verdes, pela primeira vez a tensão quebrou a paz. Umas rezavam alto: “Ah, meu Deus! Livrai-nos desse mal!”
Outras imploravam: “Que o poder do Universo nos salve nessa hora difícil!”
Choravam Gahr e Mhun, abraçadas: “Dai luz à nossa Prefeita! Que ela mude de ideia! Proteja-nos, ó leis eternas do Universo!” – Todas apelavam, enfim, para as divindades.
Aos poucos, porém, a garrafas foram ficando calmas e se conformaram com a situação. Compreenderam que nada mudaria o seu destino, fosse ele qual fosse. E a paz e a serenidade voltaram a reinar.
Rair falou alto e convicta: “Confiemos no Universo, confiemos em Deus! Tudo vai dar certo. Tudo vai ser como deve ser!”
No dia seguinte, atendendo às ordens da Prefeita, quatro garrafas verdes foram retiradas da comunidade, embrulhadas e jogadas na lixeira. Entre elas estava Aura.
Despediu-se das amigas, com lágrimas mas com esperança: “Só Deus sabe o que será de nós, minhas queridas companheiras. Mas há de ser algo bom, porque só plantamos coisas boas em nossas vidas. Só fizemos o bem aos humanos. Vamos ter fé e seguir em frente!”
No outro dia, mais quatro garrafas verdes foram levadas. No dia seguinte, mais quatro. E assim, em alguns dias, todas as garrafas foram jogadas na lixeira, pondo fim à Fraternidade das Garrafas Verdes.
O transporte no caminhão de lixo não foi penoso como temiam. Os funcionários as acomodaram com cuidado para que nenhuma se quebrasse, sinal de que pretendiam fazer algo com elas. Viajaram assim por muitas horas.
O céu já estava escuro quando o caminhão parou e as depositaram numa clareira no mato, cercada por grandes árvores. Não era um “lixão”, como temiam, mas um local ermo, de onde se avistava uma contínua silhueta de casas e casebres, sinal que havia ali perto uma comunidade de humanos.
Aura percebeu que todas as outras garrafas estavam enfileiradas ao seu lado. Era quase a repetição da antiga prateleira, agora formada no chão de terra. À medida em que as outras garrafas se davam conta dessa nova realidade, sentiam uma onda de felicidade, que se espalhou por todas. A Fraternidade das Garrafas Verdes havia, afinal, sobrevivido! Ao que tudo indicava, viveriam dali em diante, diretamente expostas à natureza, mas como todas possuíam suas tampas, não seriam invadidas pela chuva. O ambiente, portanto, era perfeito para a nova vida da comunidade.
Todas se maravilharam com a lua cheia. Aura levantou os braços para o céu e disse: “Quando fazemos a coisa certa, o Universo conspira em nosso favor!” – Ao que as outras acenaram concordando e bateram palmas. Era o início de uma nova vida, com as garrafas cheias de esperança, reafirmando o princípio de “sempre ser útil aos humanos”.
Assim que amanheceu, puderam ver melhor as casas ao redor. Todas bem pobres e certamente habitadas por subempregados da cidade. Mas para as garrafas, isso não tinha a menor importância. Para elas, todos os humanos eram iguais.
Nos dias e meses que se seguiram, as garrafas tiveram motivos para se alegrar. A Fraternidade das Garrafas Verdes foi muito mais atuante nessa nova fase, pois alguns humanos, mulheres e crianças, vinham a miúde pegá-las, o que era muito raro no tempo da antiga prateleira. Entre essas pessoas de vida tão simples, as garrafas se tornaram muito mais úteis e importantes.
Certa manhã, Aura avistou um jovem humano vindo em sua direção. Ele agachou-se e a pegou nas mãos, murmurando consigo mesmo: “Que linda! A mãe vai gostar dela!”
Em seguida a levou até um casebre, ali perto. A mãe do rapaz adorou o presente: “Você sabe escolher bem, meu filho!”
Lavou bastante a garrafa na torneira da pia, depois a encheu de água do filtro e colocou-a sobre a mesa.
“Que linda, não é mesmo, meu filho? Ela vai enfeitar a nossa mesa!”
A partir daí, Aura sentiu a felicidade de pertencer a uma família humana. Em vez de suco, agora continha água. E o medo do seu conteúdo se esgotar não existia mais...
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