(Aqui, os personagens são objetos)
O Salvação da Lavoura
Nas três prateleiras do armário da copa habitavam todos os copos, de diversos tipos, formas e cores diferentes. A competição entre eles era grande. Tulipas chiques, ostentando no peito marcas de cervejas famosas, isolaram-se em uma coleção. Outras tulipas comuns moravam sozinhas em uma prateleira, e noutra os copos simples para água e para refrescos, de uso frequente na casa, não se misturavam com os de cristal, que também se mantinham em grupo fechado. Sofisticados e gorduchos cálices de vinho, ao lado de outros magricelos e altos, próprios para champanhe, disputavam a soberania do armário.
Mas um deles se destacava de todos, pela qualidade inferior do vidro e pela aparência de pobre, igual aos que são usados nos bares e botecos chamados de “pé sujo”, frequentados por bêbados que mal podem pagar uma dose de cachaça. Esse copo, tão simplório e tão sem importância, nunca era usado e vivia esquecido no canto da prateleira. No entanto, tinha o seu nome conhecido e comentado por todos: Salvação da Lavoura.
Esse nome intrigava toda a comunidade, e a pretexto de esclarecer o mistério de sua origem, uns aproveitavam para lançar “farpas” nos outros: “Vocês têm certeza de que é esse mesmo o nome dele, ou isso foi inventado pelo copo de uísque, depois de algumas doses?” – Perguntava o cálice de vinho.
O copo de uísque rebatia: “Não, eu não perco a noção das coisas só com um pouquinho de suco de uva fermentado! Ouvi muito claramente a nossa dona chamá-lo de Sal-va-ção-da-La-vou-ra. E mais de uma vez!” – Ao que o cálice retrucou: “Então me diga que tipo de lavoura aquele esfarrapado pode ter salvado, para ter esse nome?”
E todos deram boas risadas.
Havia também um outro copo bastante humilde, chamado de Queijão, originário de um simples pote de requeijão, mas que devido à sua simpatia, conquistara a amizade de todos, inclusive do Salvação da Lavoura. Era o único que mantinha com ele uma relação mais próxima. Queijão ouvia os comentários maldosos sobre o amigo, mas não contava nada a ele. Nem se atrevia a perguntar a origem do estranho nome, por respeito, com receio de constrangê-lo. Mas depois dessa última gozação geral, criou forças e foi conversar com o Salvação.
Encontrou-o isolado lá no fundo da prateleira, quieto como sempre, e com poeira por falta de uso.
Encontrou-o isolado lá no fundo da prateleira, quieto como sempre, e com poeira por falta de uso.
“Olá, amigo. Vim para conversar um pouco, tudo bem?”
“Você é meu único amigo, tenho sempre prazer em recebê-lo” – Disse, muito formalmente, como é o seu modo de ser. Queijão já se acostumara a essa formalidade, e talvez fosse isso que o impedia de estreitar a amizade.
Mas dessa vez, Queijão estava decidido: “Quero lhe fazer uma pergunta indiscreta...”
“Fique à vontade!” – Respondeu Salvação. – “Pergunte o que quiser, mas vou logo avisando que tenho pouca instrução, por isso não garanto uma boa resposta!”
Queijão deu um risinho, vacilou um pouco, mas tomou coragem e foi direto ao assunto: “É uma pergunta muito indiscreta. Tenho curiosidade de saber quem lhe deu esse nome – Salvação da Lavoura?”
Ao contrário do esperado, Salvação não se irritou. Disse sorrindo: “Você quer mesmo saber? Talvez ache uma história sem graça...”
O amigo reafirmou sua curiosidade e Salvação começou a contar a história da sua vida: “Eu morava num lugarejo, no meio do mato, tão pobre que nem sequer tinha nome, mas ficava no Rio de Janeiro, caminho de Parati. Ali eu vivia com meu dono, um velho que vendia bugigangas numa vendinha de pau a pique coberta com sapê. Conhecia só uma estradinha de terra, nunca tinha visto asfalto.”
Todo dia era igual: uns três ou quatro fregueses, no máximo, compravam alguma coisa: bananas, tomates e umas verduras que meu dono plantava. E cerveja. Ele vivia principalmente de vender cerveja, pois um fornecedor passava de caminhão uma vez por semana, e reabastecia a venda. A cerveja toda era consumida por uns beberrões que moravam por perto.
Eu e mais dois copos iguais a mim servíamos aos bebedores de cerveja, quase toda noite. A gente passava os dias numa prateleira, em cima de uma geladeira velha, que fazia um barulhão enorme para funcionar. Essa era minha vida, e eu não tinha esperança alguma de que ela fosse mudar. Mas um dia, ou melhor, uma noite, eu e meu dono acordamos com um farol de carro, quase encostado na porta da venda, e com duas buzinadas fortes. O meu dono, que já estava quase dormindo, deu um pulo da cadeira e correu para a porta.
Pensei: “O que será que alguém quer a essa hora da noite?” – Meu velho dono conversou com eles algum tempo e depois entraram. Era um casal de jovens.
O velho me pegou e me mostrou para a moça: “Só posso vender esse aqui. Serve para a senhora?”
A moça arregalou os olhos e exclamou: “Mas claro que serve! Vai ser a salvação da lavoura!” Em seguida, pagaram ao velho e me levaram, sem nem sequer me embrulhar.
Passei aquela noite num delírio completo. Pude notar que era o único copo que dispunham, por isso eu era enchido não sei quantas vezes de vinho e depois de cerveja. No fim, até gin eu tive que levar às duas bocas – da moça e do rapaz –, que naquela altura já haviam largado o carro e estavam fazendo sexo numa barraca de acampar. Encheram a cara com várias bebidas e finalmente dormiram, me largando na areia, no
canto da barraca.
canto da barraca.
O dia seguinte amanheceu ensolarado, e o casal dormiu até bem tarde. Pensei no que fariam de mim, e fiquei com medo de ser abandonado naquele lugar deserto. Senti uma saudade enorme da segurança do meu canto, do velho, da venda e da prateleira. Como é bom ter uma casa!
Mas antes que me desesperasse, a moça acordou, sonolenta, me achou no chão e me abraçou contra o peito: ‘Olha, querido, que lindinho ele é! O seu nome agora vai ser Salvação da Lavoura!’
Pronto. Eu estava batizado.
Depois, fui levado para a mochila, viajei quase meio dia na mala do carro e acabei num lindo apartamento. Minha dona me deu um beijinho e me colocou num armário envidraçado, na cozinha, ao lado de muitos outros copos, todos chiques, a maioria de cristal.
Vivi nesse apartamento muitos anos, tratado sempre com muito carinho pela minha dona. Ela me usava quando estava sozinha, mas quando o namorado chegava, preferia usar os outros copos mais chiques.”
“E como você veio parar aqui nesta casa?” – Perguntou Queijão, muito curioso.
“Muita coisa aconteceu desde então!”
Mas nesse instante, Salvação percebeu que a porta do armário começava a ser aberta, e resolveu encerrar o assunto: “Eu lhe conto o resto mais tarde.”
As mãos de uma senhora pegaram as tulipas da coleção com imagens estampadas, na prateleira de cima, e a porta foi novamente fechada. Era sinal que tinha visita em casa.
“É ela! É a mulher da história que contei!” – Exclamou Salvação.
“Mas essa é a nossa dona! Ela já é uma senhora!” – Respondeu, surpreso, o amigo.
“O que eu lhe contei passou-se há mais de trinta anos!” – Disse Salvação, com um pouco de tristeza na voz. E concluiu: “O tempo causa mais estrago nos humanos do que em nós, eu já percebi isso...”
Queijão nem ouviu direito esta última frase, atento ao movimento no interior do armário. Notou que os outros copos se aproximaram, provavelmente para tentarem ouvir o resto da conversa.
Aproveitou-se então da situação para fazer uma aproximação entre eles: “Salvação da Lavoura, eu quero lhe apresentar os outros copos. Todos eles gostariam de conhecer você e por alguma razão até hoje viveram afastados. Mas agora eles vieram conhecê-lo. Ali está o copo de uísque, ao lado dele os cálices de vinho, os copos de água... Enfim, vieram todos.”
“Muito prazer.” – Disse formalmente, como sempre, e todos responderam ao cumprimento. Foi um bom começo.
Queijão então prosseguiu: “Estávamos aqui conversando e Solução da Lavoura contava a rica história de sua vida.”
“Nós ouvimos tudo.” – Respondeu laconicamente o copo de uísque.
“Verdade? Vocês todos ouviram a minha história?”
“Você não queria, era segredo?” – Perguntou um cálice de vinho.
“De forma alguma! Eu sempre desejei contar, explicar esse meu nome esquisito... Estou feliz por vocês se interessarem por mim!”
Queijão, curioso, acabou com os rodeios: “Você dizia que a senhora nossa dona, é a mesma mulher que lhe adotou, na noite do acampamento. É isso mesmo?”
“Sim! E faz mais de trinta anos! Primeiro eu vivi no seu apartamento de solteira, até que eles se casaram, o namorado virou marido. Fui então levado para outro apartamento, bem maior. A sala era grande, e no armário tinha muito mais copos ao meu redor. Nesse tempo, ela e o marido ainda gostavam de mim, mas não me usavam mais. Eu notei que havia me tornado um objeto de estimação, não era mais simplesmente um copo. Volta e meia, quando minha dona abria o armário, me dizia baixinho: ‘Olá, Salvação da Lavoura!’ – Mas não me levava para a mesa.
O seu marido também se mostrava feliz em me tocar. Mas na hora de usar, escolhia os outros copos... Só aos poucos eu consegui compreender e aceitar essa situação.
Os humanos vivem muito das aparências, apesar de manterem ainda um lado afetivo. Com o tempo eu compreendi isso muito bem. Aprendi a ser feliz só por saber que eles ainda gostam de mim. Eu me satisfaço com isso.
Também já aprendi que tenho uma vida maior do que a deles. Os humanos envelhecem rapidamente. Eu sou de vidro, eles de carne e osso. Um dia vão morrer, e se não me quebrarem, continuarei vivendo... Com outro dono, em outra família, mais pobre ou mais rica, não sei. Mas isso só tem importância para os humanos. Para mim não tem nenhuma.”
Os outros copos, depois de ouvirem essas palavras, caíram em si: “Você tem razão. O rótulo do uísque que a gente transporta, ou a safra do vinho, só interessa mesmo aos humanos!” – Disse o pomposo copo de uísque.
“São eles que vivem de aparência, nós não precisamos disso!” – Concluiu Salvação da Lavoura. E a partir daí, passou a ser tratado como um bom amigo por todos.
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