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quarta-feira, 7 de novembro de 2018

1 • CONTO • O país das maravilhas



O PAÍS DAS MARAVILHAS

Liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem.
Barão de Montesquieu

O empresário Bernardes Souto da Costa é um homem rico. Com pouco mais de 50 anos, os cabelos já grisalhos, tem um vigor de jovem e principalmente uma esperteza nata. Sempre gostou de dirigir e de possuir carros de luxo. 
Estaciona seu Audi A3 Sedan em frente à sua casa, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Havia marcado com a esposa de jantarem num restaurante, e já está atrasado, depois de passar a tarde conversando com o advogado, planejando sua defesa. Seu filho, um adolescente rebelde como o pai, resolveu recorrer à Justiça por ter sido proibido de fumar maconha em casa, evocando a Lei do Fascismo Paterno, iniciativa pioneira dos Direitos Humanos. 
Não pretende entrar na garagem, para nem olhar a cara do filho. Já telefonou para que a esposa saísse, mas ao saltar do carro, se depara com um cano de revólver encostando no seu peito. Um sujeito jovem e bem vestido vai logo dizendo:
“Não precisa fechar a porta! Passe a chave e os documentos do carro!”
Bernardes nunca fora assaltado em toda a sua vida. É a sua estreia, e talvez por isso ousa argumentar:
“Que direito você tem de me assaltar?” 
O assaltante mantém a arma apontada, e com a outra mão tira do bolso uma carteira. Quase a encosta no rosto do empresário, e diz, convicto:
“Assaltante profissional nº 32777 série B. Estou no meu direito. Passe logo essa chave! E a lei me dá direito aos documentos do veículo!”
Bernardes atende às exigências do assaltante. Nada mais resta fazer, pois a Lei do Assalto Urbano, outra grande conquista dos Direitos Humanos, havia sido aprovada recentemente no Congresso, e promulgada dias antes. 
Ainda bem que Bernardes é um empresário bem-sucedido, dono de uma rica empreiteira de obras. Vendo seu Audi se afastar nas mãos do assaltante, pensa que para ser possível comprar outro, terá de conseguir efetivar seu último negócio, uma obra estatal que lhe renderá alguns milhões. Calmamente, liga e pede à esposa que saía de casa com o Mercedes.
O custo da propina que pagará no dia seguinte ao deputado é relativamente alto. Mas o seu carro roubado, talvez sirva de argumento para pechinchar com o deputado uma redução da propina. Ambos são amigos e se consideram honestos, pois só trabalham com propinas que cumprem as exigências da Lei da Propina Limpa, que controla a porcentagem em relação ao custo da obra. 
No dia seguinte, o deputado o recebe em seu gabinete, onde já estava nas mãos de seu assessor o orçamento aprovado no Congresso. 
“Parabéns, amigo!” – Exclama Bernardes. “A aprovação foi mais rápida do que eu esperava! Como conseguiu?”
“Mumunhas, meu amigo, são minhas mumunhas... “
Então o empresário vai direto ao assunto:
“Temos um problema. Ontem fui assaltado, bem na porta de casa. Roubaram meu Audi. Vou ter que comprar outro, e você sabe que não é nada barato. Isso vai diminuir substancialmente o meu rendimento neste caso. Então, meu amigo, apelo para a sua amizade no sentido de me compensar, reduzindo um pouco a sua propina. Concorda?”
“Reduzir? Quanto?”
“Para cinco por cento.”
O deputado sorri. 
“Infelizmente não posso concordar. O destino dessa renda já está selado: é um ap para minha filha que vai casar mês que vem. Já está comprado. Não tenho como voltar atrás.” – Faz uma pausa, enquanto entrega o contrato ao empresário. – “Eu estou agindo com honestidade. E você já está ganhando bastante nesse superfaturamento!”
O empresário Bernardes dá uma rápida examinada no contrato: "A Lei da Sobrefatura me autoriza acrescentar irrisórios dez por cento nas notas fiscais dos meus fornecedores! E eu não coloquei um centavo a mais! Estou agindo totalmente dentro da lei! Você sabe que um carro do porte de um Audi A3 pesa na nossa balança. Para conseguir um carro do mesmo nível preciso realmente de uma redução da sua propina!”
“Somos amigos mas eu não faço filantropia. Se lhe assaltaram, não tenho culpa, é uma coisa que pode ocorrer com qualquer um de nós.”
 Aí o empresário Bernardes tem mesmo que apelar:
“E se eu lhe oferecer vinte por cento na próxima obra? Você reduz cinco por cento agora e recebe mais dez na próxima! O que acha? Você sabe que pode confiar em mim!”
O deputado retruca:
“Você também sabe que a lei não permite mais de dez por cento.”
“Ora, a lei! Tem sempre maneiras de driblar a lei, você conhece bem esse assunto! Posso colocar o excedente numa mala, deixar em algum lugar marcado... Isso se arranja!”
O deputado leva a mão ao queixo e reflete demoradamente. Depois volta-se para o empresário:
“Fechado! Pode preparar meu cheque.”
Em seguida coloca a mão no ombro de Bernardes e o olha bem nos olhos:
“Mas quero deixar claro: estou confiando na sua palavra. Você sabe que uma falsidade entre nós representa banir sua empresa de futuras licitações!”
“Não precisa me dizer isso! Jamais trairia um amigo! Principalmente você!” 
E tudo termina num demorado aperto de mãos. 


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