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quinta-feira, 2 de novembro de 2017

2. HISTÓRIAS DAS COISAS • Rubro e Bianca


RUBRO E BIANCA

Rubro se encontra numa situação terminal. O seu corpo, pressionado de um lado para retirar o último restinho de pasta, é virado ao contrário e igualmente pressionado. A escova Bianca sofre muito ao constatar que Rubro vive seus últimos momentos. Só lhe resta, quando muito, um fio de pasta.
Bianca tentou prolongar sua vida o quanto pôde, mas agora não tem mais esperança. A última porção de pasta que ele conseguiu expelir, mal deu para cobrir as suas cerdas. Ainda assim ela aguarda, pacientemente, que lhe reste um fiapo a mais...
Pressentindo o seu fim, a mente de Rubro se enche de lembranças, revendo toda a sua história.
Ao nascer e ver-se liberto da incômoda embalagem, sentiu uma alegria imensa. E quando viu sua pasta branca espalhada pela primeira vez nas cerdas da escova, pressentiu seu futuro glorioso. Esse momento se tornaria para ele inesquecível e se transformaria num grande ideal.
Foi nessa ocasião que a escova Bianca o batizou. Era então uma linda jovem italiana recém chegada ao Brasil. Bianca jamais conseguiu ser fluente no Português, por isso, inicialmente pretendeu batizá-lo de Rosso, nome escolhido por conta da sua embalagem vermelha, mas reconheceu que não soava bem para os brasileiros e mudou para Rubro, conhecido de todos.
A vida de Rubro, nos primeiros tempos, era só festa. Não se incomodava nem um pouco em ser apertado com exagero, nem em fornecer mais pasta do que o necessário. Sentia-se todo-poderoso e inesgotável.
O tempo foi passando e Rubro tornou-se adulto, embora conservando a aparência de jovem, e sua empolgação pelo trabalho. Rubro era um idealista, mas também um inconsequente: não sabia se cuidar, e o seu único prazer era servir aos outros. Acreditava que viera ao mundo com a missão de dar sua pasta para todas as escovas, principalmente para as carentes. A cada escovação ele entrava numa espécie de êxtase de felicidade, espalhando com exagero, mais pasta do que seria necessário.
Essa atitude exacerbada e constante despertou a atenção da escova Bianca, que nessa época, apesar conservar sua beleza, já era bastante vivida. Por ela passaram muitos dentifrícios, de várias marcas, de várias qualidades e sabores. Porém, nunca havia-se deparado com alguém como Rubro, entregue de corpo e alma à sua vocação, sem limite algum, sem pensar nem um pouco no futuro. Preocupada, Bianca resolveu alertá-lo e o chamou para uma conversa.
“Rubro”, falou, carinhosamente, “quero lhe falar sobre a nossa existência, gostaria que você me ouvisse...”
Rubro, muito jovem ainda, supôs que dali viria um sermão, e não lhe deu ouvidos. Enfiou-se no seu canto – parte de um belo estojo de acrílico transparente –, onde morava juntamente com ela e o fio dental. E ficou sonhando, como de costume, com o dia em que sairia livre pelo mundo, de escova em escova, ofertando a todas sua pasta cheia de flúor.
“Rubro!” – novamente a voz da Bianca, dessa vez tão suave e delicada que ele se viu impelido a dar atenção. “Sim, dona Bianca, estou ouvindo...”
A escova pôs-se a seu lado, e o olhou com tanta ternura e tão demoradamente, que ele, como uma criança, se aninhou em suas cerdas. Disse Bianca com muito amor:
“Eu vi você nascer... Fui eu que o batizei... Eu gostaria que você tivesse uma vida longa...” Ela falava baixinho e ternamente. “Querido, você desperdiça muita pasta... “
Rubro a interrompeu: “Claro, dona Bianca! Eu preciso gastar minha pasta até cumprir minha missão neste mundo!”
“Qual missão?” – perguntou a escova, muito curiosa.
“Eu vim a este mundo para servir. Ainda tenho que correr muitos lugares, principalmente os mais pobres... e dar minha pasta e meu flúor para todas as escovas que encontrar!”
Bianca sentiu um profundo respeito e admiração pelo seu ideal humanista; mas via claramente, nessas palavras, o seu rápido desgaste. E percebeu ser a única a poder salvá-lo. Então sorriu e continuou, delicadamente:
“Querido, isso é uma coisa linda! Mas é um sonho... Quanto mais você economizar sua pasta, mais tempo poderá viver para se dedicar aos outros. A sua pasta é a sua vida... ”
Rubro arregalou os olhos. Pela primeira vez, havia caído em si. ”Obrigado dona Bianca, por me alertar! Vou pensar muito nas suas palavras...” – e se aconchegou mais ainda em suas cerdas macias.
Ficaram calados algum tempo, até que ele ousou perguntar: “Por que me diz essas coisas? A senhora gosta de mim...?” 
“Eu o amo!” –, respondeu Bianca, sussurrando.
Nesse dia Rubro conheceu o que era o amor de um ser por outro. Até então, para ele o amor significava somente o desejo de ajudar a humanidade. Aquelas palavras também despertaram nele a preocupação com sua própria vida, com o futuro de sua missão. Dali em diante ele passou a controlar, pelo menos um pouco, a quantidade de pasta que gastava. Seu trabalho não seria menos empolgante por isso.
E a vida foi prosseguindo assim.
Rubro e Bianca conviviam em harmonia e alegria, na sua casa de acrílico. Para ele, Bianca era conselheira, amiga, enfim, o amor de sua vida. Passou a chamá-la de Bia, e a diferença de idade entre os dois, antes tão considerada, agora nada significava. Rubro brincava com ela, ficava horas alisando suas cerdas, muito macias, e dormiam sempre agarradinhos, num carinho sem fim.
Bianca era completamente liberta de preconceitos, mas priorizava sempre as qualidades internas. Sabia muito bem que o invólucro de nada valia e que a vida de seu amado estava restrita à quantidade de pasta do seu corpo. A vida de Rubro teria sido muito curta, não fossem seus conselhos. Assim, achava-se responsável por ele.
Mas nem tudo era perfeito.
A relação entre os dois suscitava constantes e maldosos comentários do Fio Dental, o preconceituoso vizinho no estojo acrílico. Ele nutria o desejo de acabar com aquele “caso imoral entre uma velha e uma criança”, mas como era dissimulado, conseguia disfarçar suas verdadeiras intensões e ser gentil no trato com os dois. Sorria ao cumprimentá-los, sempre que se cruzavam na entrada do armário.
Essa aparente gentileza fazia parte de um plano maquiavélico: Fio Dental aumentava cada vez mais o seu tempo de atuação nos dentes, provocando, em contrapartida, mais empenho também da pasta e da escova. Resultado é que Rubro, gastava muito mais pasta em cada escovação, encurtando o seu tempo de vida. Mas, como nada disso era evidente, nada era percebido.
A vida transcorria na aparente normalidade, até que recentemente, durante uma escovação, Rubro se deu conta de que precisava ser comprimido muito além do normal para fazer sair a sua pasta. Pressentiu naquele instante o seu fim se aproximando.
Bianca fez todo o possível para retardar o seu fim. Passou a solicitá-lo cada vez menos, até se conformar apenas com um fiozinho de pasta em cada escovação. Mas não podia ir além disso, e não demorou muito para que Rubro se esgotasse completamente.
Agora ele está ali, semi desfalecido, quase morto. O amor de Bia e as lembranças dos velhos tempos são tudo o que lhe resta nesse momento.
É novamente pressionado, na tentativa de conseguir mais um pouquinho de pasta. Mas nada sai. Rubro volta-se com dificuldade e vislumbra a amada ao seu lado. Não consegue mais distinguir a realidade da alucinação. Faz um grande e último esforço e balbucia: “Bia... Eu te amo... ”
Bianca ouve, emocionada. Algumas lágrimas caem dos seus olhos sobre o corpo de Rubro, já sem vida. Lentamente, ela se afasta. Não suportaria ver seu amado ser levado dali, não suportaria ver seu fim. Ao passar pelo Fio Dental, sente um olhar pesado. Com um leve sorriso sarcástico, ele parece dizer: “Finalmente, consegui o que desejava.”


sendino.claudio@gmail.com

Um comentário:

Domingos C Branco disse...

Amigo Sendino
É incrível como você consegue criar poesia com este material.
Abraço
Domingos