RUBRO E BIANCA
Rubro se encontra numa situação terminal. O seu corpo, pressionado
de um lado para retirar o último restinho de pasta, é virado ao contrário e
igualmente pressionado. A escova Bianca sofre muito ao constatar que Rubro vive
seus últimos momentos. Só lhe resta, quando muito, um fio de pasta.
Bianca tentou prolongar sua vida o quanto pôde, mas agora não tem
mais esperança. A última porção de pasta que ele conseguiu expelir, mal deu
para cobrir as suas cerdas. Ainda assim ela aguarda, pacientemente, que lhe
reste um fiapo a mais...
Pressentindo o seu fim, a mente de Rubro se enche de lembranças,
revendo toda a sua história.
Ao nascer e ver-se liberto da incômoda embalagem, sentiu uma
alegria imensa. E quando viu sua pasta branca espalhada pela primeira vez nas
cerdas da escova, pressentiu seu futuro glorioso. Esse momento se tornaria para
ele inesquecível e se transformaria num grande ideal.
Foi nessa ocasião que a escova Bianca o batizou. Era então uma
linda jovem italiana recém chegada ao Brasil. Bianca jamais conseguiu ser
fluente no Português, por isso, inicialmente pretendeu batizá-lo de Rosso, nome
escolhido por conta da sua embalagem vermelha, mas reconheceu que não soava bem
para os brasileiros e mudou para Rubro, conhecido de todos.
A vida de Rubro, nos primeiros tempos, era só festa. Não se
incomodava nem um pouco em ser apertado com exagero, nem em fornecer mais pasta
do que o necessário. Sentia-se todo-poderoso e inesgotável.
O tempo foi passando e Rubro tornou-se adulto, embora conservando
a aparência de jovem, e sua empolgação pelo trabalho. Rubro era um idealista,
mas também um inconsequente: não sabia se cuidar, e o seu único prazer era
servir aos outros. Acreditava que viera ao mundo com a missão de dar sua pasta
para todas as escovas, principalmente para as carentes. A cada escovação ele
entrava numa espécie de êxtase de felicidade, espalhando com exagero, mais
pasta do que seria necessário.
Essa atitude exacerbada e constante despertou a atenção da escova
Bianca, que nessa época, apesar conservar sua beleza, já era bastante vivida.
Por ela passaram muitos dentifrícios, de várias marcas, de várias qualidades e
sabores. Porém, nunca havia-se deparado com alguém como Rubro, entregue de
corpo e alma à sua vocação, sem limite algum, sem pensar nem um pouco no
futuro. Preocupada, Bianca resolveu alertá-lo e o chamou para uma conversa.
“Rubro”, falou, carinhosamente, “quero lhe falar sobre a nossa
existência, gostaria que você me ouvisse...”
Rubro, muito jovem ainda, supôs que dali viria um sermão, e não
lhe deu ouvidos. Enfiou-se no seu canto – parte de um belo estojo de acrílico
transparente –, onde morava juntamente com ela e o fio dental. E ficou
sonhando, como de costume, com o dia em que sairia livre pelo mundo, de escova
em escova, ofertando a todas sua pasta cheia de flúor.
“Rubro!” – novamente a voz da Bianca, dessa vez tão suave e
delicada que ele se viu impelido a dar atenção. “Sim, dona Bianca, estou
ouvindo...”
A escova pôs-se a seu lado, e o olhou com tanta ternura e tão
demoradamente, que ele, como uma criança, se aninhou em suas cerdas. Disse
Bianca com muito amor:
“Eu vi você nascer... Fui eu que o batizei... Eu gostaria que você
tivesse uma vida longa...” Ela falava baixinho e ternamente. “Querido, você
desperdiça muita pasta... “
Rubro a interrompeu: “Claro, dona Bianca! Eu preciso gastar minha
pasta até cumprir minha missão neste mundo!”
“Qual missão?” – perguntou a escova, muito curiosa.
“Eu vim a este mundo para servir. Ainda tenho que correr muitos
lugares, principalmente os mais pobres... e dar minha pasta e meu flúor para
todas as escovas que encontrar!”
Bianca sentiu um profundo respeito e admiração pelo seu ideal
humanista; mas via claramente, nessas palavras, o seu rápido desgaste. E
percebeu ser a única a poder salvá-lo. Então sorriu e continuou, delicadamente:
“Querido, isso é uma coisa linda! Mas é um sonho... Quanto mais
você economizar sua pasta, mais tempo poderá viver para se dedicar aos outros.
A sua pasta é a sua vida... ”
Rubro arregalou os olhos. Pela primeira vez, havia caído em si.
”Obrigado dona Bianca, por me alertar! Vou pensar muito nas suas palavras...” –
e se aconchegou mais ainda em suas cerdas macias.
Ficaram calados algum tempo, até que ele ousou perguntar: “Por que
me diz essas coisas? A senhora gosta de mim...?”
“Eu o amo!” –, respondeu Bianca, sussurrando.
Nesse dia Rubro conheceu o que era o amor de um ser por outro. Até
então, para ele o amor significava somente o desejo de ajudar a humanidade.
Aquelas palavras também despertaram nele a preocupação com sua própria vida,
com o futuro de sua missão. Dali em diante ele passou a controlar, pelo menos
um pouco, a quantidade de pasta que gastava. Seu trabalho não seria menos
empolgante por isso.
E a vida foi prosseguindo assim.
Rubro e Bianca conviviam em harmonia e alegria, na sua casa de
acrílico. Para ele, Bianca era conselheira, amiga, enfim, o amor de sua vida.
Passou a chamá-la de Bia, e a diferença de idade entre os dois, antes tão
considerada, agora nada significava. Rubro brincava com ela, ficava horas
alisando suas cerdas, muito macias, e dormiam sempre agarradinhos, num carinho
sem fim.
Bianca era completamente liberta de preconceitos, mas priorizava
sempre as qualidades internas. Sabia muito bem que o invólucro de nada valia e
que a vida de seu amado estava restrita à quantidade de pasta do seu corpo. A
vida de Rubro teria sido muito curta, não fossem seus conselhos. Assim,
achava-se responsável por ele.
Mas nem tudo era perfeito.
A relação entre os dois suscitava constantes e maldosos
comentários do Fio Dental, o preconceituoso vizinho no estojo acrílico. Ele
nutria o desejo de acabar com aquele “caso imoral entre uma velha e uma
criança”, mas como era dissimulado, conseguia disfarçar suas verdadeiras
intensões e ser gentil no trato com os dois. Sorria ao cumprimentá-los, sempre
que se cruzavam na entrada do armário.
Essa aparente gentileza fazia parte de um plano maquiavélico: Fio
Dental aumentava cada vez mais o seu tempo de atuação nos dentes, provocando,
em contrapartida, mais empenho também da pasta e da escova. Resultado é que
Rubro, gastava muito mais pasta em cada escovação, encurtando o seu tempo de
vida. Mas, como nada disso era evidente, nada era percebido.
A vida transcorria na aparente normalidade, até que recentemente,
durante uma escovação, Rubro se deu conta de que precisava ser comprimido muito
além do normal para fazer sair a sua pasta. Pressentiu naquele instante o seu
fim se aproximando.
Bianca fez todo o possível para retardar o seu fim. Passou a
solicitá-lo cada vez menos, até se conformar apenas com um fiozinho de pasta em
cada escovação. Mas não podia ir além disso, e não demorou muito para que Rubro
se esgotasse completamente.
Agora ele está ali, semi desfalecido, quase morto. O amor de Bia e
as lembranças dos velhos tempos são tudo o que lhe resta nesse momento.
É novamente pressionado, na tentativa de conseguir mais um
pouquinho de pasta. Mas nada sai. Rubro volta-se com dificuldade e vislumbra a
amada ao seu lado. Não consegue mais distinguir a realidade da alucinação. Faz
um grande e último esforço e balbucia: “Bia... Eu te amo... ”
Bianca ouve, emocionada. Algumas lágrimas caem dos seus olhos
sobre o corpo de Rubro, já sem vida. Lentamente, ela se afasta. Não suportaria ver
seu amado ser levado dali, não suportaria ver seu fim. Ao passar pelo Fio
Dental, sente um olhar pesado. Com um leve sorriso sarcástico, ele parece
dizer: “Finalmente, consegui o que desejava.”
sendino.claudio@gmail.com
Um comentário:
Amigo Sendino
É incrível como você consegue criar poesia com este material.
Abraço
Domingos
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