GRANDES EVENTOS
•História 11
Caso de polícia
(Continuação
de O renascimento da Fininha –
publicado em dezembro de 2016)
Era madrugada, quando os policiais invadiram a gaveta e deram
ordem de prisão aos dois facões. Rebite Prata e Rebite Dourado, embrulhados em
jornal e algemados, foram levados sem nenhuma explicação. Tudo aconteceu tão rápido,
que nem ocorreu à faquinha Azul, que estava ao lado, indagar o porquê daquela
agressão. Ela ficou em estado de choque, permanecendo imóvel, sem dizer palavra.
Logo chegou correndo sua prima Fininha, que acordara com os ruídos, a perguntar
o que estava acontecendo, despertando Azul de sua inanição.
“A polícia levou os dois... não sei mais nada...”, balbuciou Azul,
com muita dificuldade. Fininha lhe revelou que durante a noite acontecera algo
muito estranho: já era bem tarde, quando um desconhecido chegou, trocou algumas
palavras com o Prata, e os dois saíram às pressas. Ela pensou tratar-se de uma
tarefa qualquer na cozinha, mas Prata retornou algum tempo depois, muito
aflito, repetindo consigo mesmo: “Eu fui usado... Eu fui usado...” Deitou-se e não quis comentar nada. “O que
será que ele queria dizer?” “O que será que aconteceu?”, perguntavam uma à
outra, sem atinarem as respostas.
Logo que amanheceu, foi grande o alvoroço em toda a gaveta. Os
dois facões eram admirados e queridíssimos por todos, que acompanhavam sempre
pela TV as apresentações do grupo nos dois torneios. Formou-se um mistério que
duraria ainda bastante tempo...
É claro que naquela manhã não houve espetáculo. O Diretor de
eventos, ao saber do ocorrido tentou minimizar, numa entrevista que foi ao ar
em edição extraordinária nas TVs e divulgado nas redes sociais. Disse
laconicamente que os dois facões teriam de se ausentar por tempo indeterminado devido
a problemas particulares, por isso os dois torneios seriam suspensos por mais
dois dias, e que retornariam sob o comando das faquinhas Azul e Fininha. Fez
altos elogios à competência das duas, garantindo que, por essa razão, a
qualidade das apresentações não sofreria dano com a ausência dos facões. O
Diretor deu o recado com tanta firmeza, que o público aceitou de imediato,
embora com uma certa estranheza, por ele nada ter comentado sobre que
“problemas particulares” seriam esses.
Na gaveta, Azul e Fininha choravam muito, e o clima na comunidade
era de comoção geral pela prisão dos dois facões. Na maioria, os moradores
deram votos de solidariedade e confiança, pois conheciam de perto o caráter,
tanto do Rebite Prata quanto do Dourado, e estavam certos de que a qualquer
momento tudo seria esclarecido e lhes devolveriam a liberdade.
No dia seguinte, as duas faquinhas conversaram muito. Ambas já
haviam adquirido maturidade suficiente para terem consciência de ser aquele um
momento de superação, a qualquer custo. Não havia outra saída: ou se ajudavam
mutuamente ou seria o fim dos dois torneios e de suas carreiras artísticas. Corajosas,
fizeram o pacto de manterem sozinhas, dali em diante, todos os espetáculos. Seja
lá o que estivesse acontecido com seus mestres e amigos –, concordaram as duas
–, essa seria a atitude que eles desejariam vê-las tomar.
Na reestreia, com a plateia lotada, a faquinha Azul foi a primeira
a se apresentar. Cumpriu sua tarefa muito bem, sendo aplaudidíssima. Fininha,
no dia seguinte, também se saiu brilhantemente, mantendo em alto nível o
Torneio Tirinhas. Sucederam-se apresentações intercaladas das duas, tanto no
Torneio Tirinhas quanto no Tirinhas Uno, sempre correspondendo às exigências
daquele público seleto e cada vez mais numeroso. Sim, o público cresceu, para
satisfação do Diretor, que via a bilheteria aumentar a arrecadação.
Além de talentosas, as duas faquinhas eram muito unidas, entre
elas jamais houve competição, ao contrário, cada atuação marcante de uma, dava grande
alegria para a outra.
Correram semanas, e nenhuma notícia dos facões presos. As
faquinhas ligavam constantemente para a polícia, mas a resposta era sempre a
mesma: que estavam investigando. Tanto Azul quanto Fininha se recusavam a
admitir que os dois tivessem se envolvido em alguma atividade ilícita.
Conheciam o caráter dos dois e tinham certeza de que estavam sendo vítimas, que
cedo ou tarde tudo se esclareceria. Mas a demora as deixava tão preocupadas,
que faziam uma verdadeira ginástica mental para não caírem em depressão. Quando
isso começava a acontecer, sempre uma “puxava a outra para cima”, mantendo uma
constante esperança.
O público, no entanto, reagia de maneira bem diferente. Como a
prisão dos facões não foi divulgada pela imprensa, circulava o boato de que
estavam doentes, internados num hospital cujo nome era mantido em sigilo. Daí,
todos os hospitais da cidade não pararam de receber ligações perguntando pelo
Prata e pelo Dourado.
Enquanto isso, as faquinhas Azul e Fininha faziam enorme sucesso.
Eram tão hábeis no corte das tirinhas, nas sutis reposições dos pequenos
farelos que se soltavam, que começaram a ser consideradas mais talentosas do
que os próprios facões. Para a maioria do público, os nomes Rebite Prata e
Rebite Dourado já não significavam tanto. O interesse por eles foi diminuindo,
e os telefones dos hospitais também se acalmaram.
Alguns comentários maldosos começaram a surgir na comunidade da
gaveta, onde todos sabiam que eles foram presos. Os dois facões, que nessa altura já eram pouco
admirados pelo grande público, começaram a ser taxados de marginais, por alguns
vizinhos da própria comunidade. Chegaram a inventar que os dois faziam parte do
crime organizado, que estavam envolvidos em corrupção, que recebiam propina
para vencerem os torneios...
As duas faquinhas, longe de se contaminarem com esses boatos,
mantinham inabalável confiança de que, algum dia, tudo seria devidamente
explicado.
Não foi preciso esperarem tanto. Pela manhã, dois policiais
entraram na comunidade procurando por elas. Os dois vestiam ternos cinza,
bastante surrados, e apenas um tinha gravata, preta, toda amassada. Azul e
Fininha, com o coração aos pulos, correram para recebê-los.
“Temos boas notícias”, disse o policial de gravata. “Seus amigos
facões foram libertados e já estão chegando aí.
As duas se abraçaram e choraram de alegria. Entre soluços, perguntou
Fininha: “O que aconteceu? Por que prenderem eles?”
O policial de gravata era o que falava, enquanto o outro somente
concordava com a cabeça.
Contou sem rodeios toda a história: “Eu sou o detetive Xisto, este
aqui é meu auxiliar. Fomos informados de que um facão residente nesta
comunidade havia participado de um assalto, e como não sabíamos qual deles,
prendemos os dois. Fizemos um trabalho investigativo e pericial baseado na
descrição feita por um dos facões, que atendia pelo nome de Rebite Prata, e
conseguimos prender o bandido. Ele confessou que realmente usou o facão para
cometer o assalto. O facão não teve culpa, foi enganado pelo marginal com uma
proposta de trabalho e acabou raptado. Mas quando ia ser usado para ferir a
vítima, conseguiu se desvencilhar e pular fora, caindo na calçada. Isso deu
tempo suficiente para a vítima fugir, e o bandido com raiva o abandonou ali no
chão. Por isso ele pôde voltar para casa.”
O detetive Xisto fez uma pausa e apontou para as duas faquinhas: “Nós
viemos aqui, porque é importante vocês saberem que seu amigo procedeu com
heroísmo. Vocês devem festejar a sua volta.”
Durante o relato, Azul e Fininha ficaram com lágrimas nos olhos.
Mas quando, no final, o investigador chamou o Prata de herói, aí as duas caíram
em prantos, abraçando-se novamente, e quando voltaram a olhar para os
detetives, não os viram mais. Nos seus lugares estavam, nada mais, nada menos,
do que o Rebite Prata e o Rebite Dourado. Bem ali, diante delas!
Impossível descrever a emoção daquele momento. Todos choraram
abraçados, durante um bom tempo. Alguns vizinhos da comunidade se aproximaram,
também emocionados. Pouco depois, uma pequena multidão se formava em volta,
todos muito felizes pela volta dos facões, inclusive aqueles que fizeram os
comentários maldosos...
Depois desses primeiros momentos, já no aconchego de sua casa, em
compania do Prata e do Dourado, a faquinha Azul telefonou para o Diretor,
contando a volta dos dois facões. Ele imediatamente marcou uma reunião de
emergência em seu escritório, para decidirem que rumo tomar.
Na mesa de reuniões, assim que se acomodaram, o Diretor cobrou uma
explicação detalhada dos motivos da prisão. O próprio Prata relatou passo a
passo o que aconteceu. Contou que uma figura estranha o procurou em casa, à
noite, pedindo ajuda para um “serviço” na cozinha, e assim que os dois saíram
da gaveta ele revelou-se um bandido e o raptou. Contou a tentativa de usá-lo no
assalto, a escapada no momento certo e o retorno para casa, até a chegada da
polícia para prendê-lo.
O Diretor ouviu com toda a atenção, refletiu alguns segundos e depois
o cumprimentou. “Parabéns, meu caro. Eu sempre soube que você é honesto e do
bem, nunca duvidei disso”. Todos se entreolharam sorrindo, mas o Diretor prosseguiu:
“Justamente para lhe proteger, eu calei toda a imprensa. Felizmente para nós,
toda ela é movida por dinheiro! O custo foi bem alto, mas eu tive de pagar,
porque se divulgassem sua prisão, é fácil prever que seria o fim dos nossos
torneios.
“Certo, mas... O senhor pretende cobrar de nós?“, perguntou a
Azul.
“Não, não é isso, eu sei que vocês não têm recursos”, fez questão
de frisar, “Mas vou pedir que concordem em continuar levando os torneios do
jeito que está, por mais tempo”.
“Mas a volta do Prata e do Dourado deverá trazer mais público!”,
afirmou a Azul, e a Fininha completou: “Vai aumentar a bilheteria!”
“Enganam-se. O público já se acostumou com vocês duas. Para dizer
a verdade, quase não se ouve mais falar nos nossos queridos facões... Sabemos
que os dois são muito bons, mas queiramos ou não, essa é a realidade. Infelizmente...”
Ninguém pôde contestar. Fez-se um silêncio mortal, finalmente
quebrado pelo Rebite Prata: “Concordo inteiramente com o senhor. Vamos ficar
assim.”
No dia seguinte, toda a imprensa divulgou uma nota comunicando a
volta dos dois facões às suas residências, ambos com a saúde ainda debilitada,
necessitando de repouso por tempo indeterminado. Nenhuma entrevista, nenhuma
foto.
E o público voltou a lotar os espetáculos, com a faquinha Azul e a
Fininha como únicas protagonistas.
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