Translate

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 6 • A concorrente


HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
_________________________________________________________________________________________



 GRANDES EVENTOS
História 4
A concorrente
(Continuação de Reviravolta no torneio – dezembro de 2015)

O Torneio das Tirinhas passou a ter apresentações intercaladas da faquinha Azul e do facão Rebite Prata, após a sua volta da distante gaveta na churrasqueira, onde estava exilado há anos, juntamente com seu inseparável amigo, Rebite Dourado.
Conforme estabelecido no contrato, a volta do Prata previa espetáculos sem datas regulares. Sua primeira apresentação foi de surpresa, com pouco público, mas que o aplaudiu de pé. Essa surpresa, maciçamente divulgada na mídia, iria angariar um público crescente, trazendo de volta o brilho e o sucesso de tempos atrás. Assim pensavam o diretor de eventos e os patrocinadores, agora que os infindáveis pedidos do grande público, nas redes sociais, foram atendidos.
O grande ídolo estava de volta, mas as apresentações seguintes foram, na maioria, da faquinha Azul, cada vez mais competente e criativa. O Prata, ainda desanimado, quase sempre se recusava a atuar. A faquinha chegava a implorar para que ele se apresentasse, em nome da amizade dos dois. Só assim ele acabava consentindo, porém atuando de forma apenas regular, sem brilho.
O aumento de público foi muito abaixo do esperado. Pressionado pelos patrocinadores por mais assiduidade e mais empenho nas apresentações, Rebite Prata reconheceu sua má fase e prometeu fazer o possível. Ligou para seu amigo Rebite Dourado, que ficara na churrasqueira, e fez um apelo dramático para que viesse socorrê-lo.
Amigos são para essas coisas... Dias depois, o Dourado chegava à gaveta da cozinha, recebido com muita alegria, inclusive pela faquinha Azul, que se tornara amiga de ambos.  Facão Dourado avisou logo que desejava preservar seu anonimato, e somente se apresentaria em caso extremo. Ainda assim, sua compania foi um grande incentivo, uma injeção de ânimo, tanto que logo na apresentação seguinte, Prata arrancou muitas palmas, com um desempenho primoroso, agradando ao público e principalmente aos empresários.
Seguiu-se uma rotina de boas apresentações, sempre intercaladas com as da faquinha Azul, que aprimorava sua técnica a olhos vistos. Esse processo não passava despercebido do público, que agora se dividia, muitos achando que ela superou seu mestre. Realmente, em vários espetáculos era mais aplaudida do que o Prata.
Podia-se dizer que o Torneio das Tirinhas havia recuperado grande parte da fama de outrora, mas era evidente que não chegou sequer a igualar o antigo sucesso. Isso foi sentido sobretudo nos bolsos dos empresários, mas nada restava fazer, pelo menos por enquanto...
Foi aí que a criatividade da faquinha Azul manifestou-se novamente. Ela propôs uma nova modalidade para o Torneio das Tirinhas, com tudo diferente. Batizou de “Torneio de Tirinhas Uno”, devido a não usar mais as duas fatias de pão Árabe e sim uma fatia apenas do pão com Quinoa, que começara a ter grande aceitação na residência. As tirinhas seriam em menor número e bem mais largas do que as tradicionais, com o queijo por cima, descoberto.
A direção do evento permitiu uma apresentação experimental das novas Tirinhas Uno. Quem sabe estivesse ali o sucesso que tanto desejavam...
E realmente a experiência prometeu sucesso. A reação do público convidado especialmente para o evento foi tão positiva, que muitos vislumbraram as Uno igualando ou até superando as tirinhas tradicionais. No entender dos dirigentes, as Tirinhas Uno tinham potencial para se tornar o “torneio do futuro”, e imediatamente efetivaram a nova modalidade.
Quem não gostou nada foram os dois facões, o Prata e o Dourado. Não conseguiam aceitar uma mudança tão radical. A amizade entre eles e a faquinha Azul foi estremecida, pois ela lhes pareceu interessada apenas na busca do sucesso imediato. Então, como acontece com os honestos e bem-intencionados, reuniram-se para uma conversa franca.
A faquinha jurou que nunca desejou levar vantagem nem descartou a participação dos dois facões. Disse que sempre previu a inclusão de ambos no novo projeto. Mas tanto o Prata quanto o Dourado deixaram claro que “jamais participariam” de um torneio daquela natureza, o que certamente criaria um grande problema.
Ao vê-los tão decididos, percebendo que poderia perder a amizade de seu mestre, a faquinha Azul não teve dúvidas: optou por se afastar também e permanecer ao lado deles. Indicou para a função a sua prima Fininha, nunca chamada antes por ser muito frágil, sem a firmeza necessária para o corte. Mas como o novo pão era muito macio e a tarefa de cortar bem mais simples, ela conseguiria atuar, sem problema. E assim chegaram a um acordo.
A direção aceitou a sugestão da faquinha Azul de contratar Fininha para atuar na nova modalidade, e tudo correu como previsto. A primeira apresentação oficial do novo Torneio Uno, teve Fininha como protagonista, e ela cumpriu com perfeição a tarefa de cortar as novas tiras e dispô-las na bandeja. Felizmente foi muito favorável a reação do público.
Agora, podia-se a contar com duas opções: de um lado, o Torneio Tradicional, mais frequente, onde continuaram revezando o facão Prata com a faquinha Azul; ora um, ora outro se destacava, sendo que, na quantidade de público, a faquinha superava quase sempre seu amigo. De outro, o Torneio Uno, que ia aos poucos ganhando espaço, com a Fininha dando conta muito bem de sua função. A concorrência entre os dois torneios era muito bem-vista pelos dirigentes, naturalmente.
Fininha tinha a personalidade muito diferente de sua prima. Por baixo de sua aparência tímida, era extremamente vaidosa, teimosa e prepotente. Vendo-se com grande destaque na mídia, revelou-se: começou a agir como uma grande estrela, exigindo um local especial na gaveta, separado dos outros talheres, o acréscimo de meia fatia de pão, e autoridade absoluta sobre todo o espetáculo. Até mesmo na hora de fazer as fotos para este artigo, Fininha agiu com estrelismo: gritando com o fotógrafo, mandava repetir as fotos do ângulo que se achava melhor, empurrava o pão mais para lá, mais para cá... O fotógrafo não aguentava mais tanta “frescura”...     
Essa atitude exacerbada, amplamente divulgada, acabou virando motivo de chacota entre o público. O pote de orégano, que atuava nos dois torneios, ria-se a valer da pose da Fininha. Ocultamente, é claro, porque se ela soubesse o expulsaria da equipe.
Mas, exatamente por essa situação, o Torneio Uno continuou fazendo muito sucesso. O público se deliciava em ver a Fininha, sempre muito nervosa e agitada, atuando em todas as etapas, reclamando de tudo, gritando com auxiliares, até a operação final da colocação das largas tiras na bandeja, quando fazia questão de não seguir nenhum critério, improvisando de forma diferente a cada dia. O público a aplaudia sempre, pois reconhecia que apesar de tudo, ela era habilidosa e eficiente.
Enquanto isso, o Torneio Tradicional seguia sem novidades. O Facão Prata, agora mais assíduo, repetia atuações competentes, alternadas com as também impecáveis e aplaudidas apresentações da faquinha Azul. Mas o público não aumentava. Sinal que faltava alguma coisa, algo que agitasse, que provocasse polêmica... Tudo acontecia muito certinho, era perfeito demais!
O que faltava aconteceu numa manhã, assim que o Facão Prata iniciou. Logo no primeiro corte, sentiu a condição perfeita do pão, quase sem rugas, e do queijo, de consistência ideal. Num relance, lembrou-se de seu último recorde, há tantos anos. De lá para cá, só conseguira 14, no máximo 15 tirinhas, sem motivação para forçar mais do que isso. Habituara-se com a normalidade. Era isso que o público reclamava!
Sentiu-se tomado pelo antigo entusiasmo e, sem pensar em mais nada, começou a estreitar e reduzir a inclinação do corte, para aumentar o número de tirinhas. Fez isso repetidamente, cada tirinha mais estreita que a outra. O público levantou-se e, calado, ficou atento a todos os movimentos. Finalmente, na última tirinha, uma diagonal perfeita, sem deixar poeira. A contagem foi de 19 tirinhas, um recorde da fase atual.
Numa explosão de aplausos, o facão Prata foi ovacionado. Há muito tempo não acontecia nada parecido. A faquinha, sempre amiga, correu a abraçá-lo.

Esse feito colocaria o Torneio da Tirinhas novamente em evidência como o grande evento das manhãs. Era o prenúncio de novos e bons tempos!

Nenhum comentário: