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quinta-feira, 3 de setembro de 2015

* HISTÓRIAS DAS COISAS – 2 • Novo recorde mundial



HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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A SAGA DOS FACÕES
Capítulo I
Novo recorde mundial

     O recorde do grande Torneio das Tirinhas, que há muito permanecia de 23, foi superado hoje. O feito coube ao facão Rebite Prata. Desde o corte da primeira tirinha, o público começou a desconfiar que ele tentaria o recorde, apesar de ter declarado que a sua intenção era apenas fazer um trabalho saboroso. Somente lá pelo meio do percurso, quando vislumbrou reais possibilidades, foi que ele admitiu publicamente estar tentando o recorde.
Depois de dividir com cuidado e técnica o último pedacinho de pão, antes da contagem, Rebite Prata declarou modestamente ao repórter de pista, que esperava no máximo 20 tirinhas. Mas a contagem oficial foi mesmo de 24, superando em uma o antigo recorde.
Na festa, além de muitos admiradores e da diretoria, compareceu o facão Rebite Dourado, seu amigo inseparável desde o tempo de criança.
A história dos dois facões é comovente. Habitavam a mesma gaveta no armário da cozinha, juntamente com um facão de cabo vermelho, e outros menores. O grande passatempo de todos era assistir diariamente pela televisão o Torneio das Tirinhas, realizado na arena da tábua de queijos, que era protagonizado pelas Facas Nobres da gaveta ao lado.
O torneio nessa época, disputado a cada dia por uma faca diferente, era praticamente igual ao atual. Consistia em cortar metade de um pão árabe recheado de queijo branco, em finas tirinhas. No início, o queijo era puro, mas depois passou a ser regado com diversos temperos (gotas de azeite, ervas finas etc.), e atualmente apenas com orégano. Depois de cortadas, as tirinhas são contadas, e a quantidade delas determina o recorde a ser superado.
Mas o espetáculo não para aí. Cada tira é transportada cuidadosamente da tábua para uma bandeja, pela mesma faca que fez os cortes. A disposição das tirinhas na bandeja é um espetáculo à parte, formando desenhos decorativos, mas deixando sempre um espaço livre que permita pegar a bandeja, depois de quente. Para essa operação, a “pegada de bandeja”, uma pequena toalha permanece no seu posto, atenta, junto ao fogão, durante todo o evento.
Naquele tempo das Facas Nobres, a competição pela quebra de recordes era ainda mais acirrada. Um fantástico sucesso comercial, com o público aumentando a cada espetáculo. Porém, havia um ponto extremamente negativo: as constantes brigas entre as Facas Nobres e as Facas Inferiores, devido à enorme competição entre as duas classes. Tais desavenças prejudicaram a popularidade e o prestígio do torneio a tal ponto, que chegou ser cogitado o cancelamento do espetáculo. Então, a direção-geral fez uma reunião extraordinária para encontrar uma possível solução, e tomaram uma medida drástica: resolveram aposentar as facas, e fazer um teste com um facão. Com apenas um protagonista, seria o fim das brigas. A ideia foi imediatamente aprovada e posta em prática, agendando-se os testes iniciais.
Em votação, foi escolhido o facão de rebites prateados para o teste de eficiência. Exatamente aquele que morava com os outros, na gaveta do armário, e só era usado para funções triviais.
No teste, ele revelou-se perfeito para a função, em tudo se mostrando superior às facas: na facilidade de corte, no domínio do queijo e no transporte final para a bandeja. Eleito por unanimidade, o Rebite Prata passou a ser o titular da função, eliminando completamente o uso das antigas facas.
O torneio daí em diante transcorreu em perfeita paz, sem brigas nem disputas. O público diminuiu bastante, como era previsto, pois estavam acostumados com as facas, bem menores. Mas com a notória eficiência do facão, que adquiria mais técnica a cada exibição, voltou a lotar as arquibancadas. Em pouco tempo o Rebite Prata, como ficou conhecido, igualou o recorde das Facas Nobres, de 17 tirinhas.
Detalhe interessante, é que no final de um evento, o pote de orégano declarou ao repórter que, diariamente, depois de cumprir sua tarefa de pulverizar o queijo, assistia o resto do espetáculo pela TV. Ele se mostrou tão interessado, que a direção do evento, ao assistir a entrevista, lhe concedeu a permanência cativa ao lado da tábua de corte, durante todo o desenrolar do torneio. Ele hoje é um personagem querido e apreciado por todos.
Na gaveta onde reside, o Rebite Prata passou a ser venerado até pelos outros facões, que reconheceram seu talento. Nada de ciúme por ele ter sido o escolhido. Seus amigos compreenderam que foi uma escolha acertada e passaram a considerá-lo um herói, demonstrando verdadeira grandeza de espírito.
Por sua vez, o já famoso Rebite Prata, sempre teve uma constante preocupação com os outros. Achava injusta a sua escolha sem que todos fossem testados. Sobretudo o seu maior amigo, Rebite Dourado, que possuía o mesmo tamanho e o mesmo potencial. Não comentou nada, mas foi amadurecendo a ideia de dividir a função com o amigo.
Chegou um momento em que propôs à diretoria fazer uma parceria com o outro facão. Garantiu que não haveria brigas, no máximo uma disputa sadia, apenas esportiva. Como sua popularidade estava em alta e merecia grande consideração dos organizadores do evento, sua proposta foi aceita, por um período de avaliação.
Não é preciso dizer da euforia do amigo ao receber a notícia. Na estreia, abraçaram-se efusivamente, tornando pública a amizade de tantos anos. Ele saiu-se tão bem que foi efetivado por unanimidade. O grande torneio passou então a contar com dois participantes: Rebite Prata e Rebite Dourado.
O novo facão, durante as suas atuações, muito aprendeu com seu amigo. E não escondia isso, ao contrário, sempre o julgou um mestre, mesmo quando igualou seu recorde, que nessa altura era de 19 tirinhas.
Ele era considerado muito talentoso, mas um pouco estabanado, derrubando muitas vezes pedacinhos de queijo no transporte para a badeja. Rebite Prata, sim, era por todos considerado um grande mestre. Tinha uma técnica inigualável para o corte, sem “derrapar”, sem entornar nada. E no transporte, fazia a operação com tal delicadeza que sempre arrancava aplausos e gritos da torcida.
Chegou o tempo da mudança de tábuas.
Um novo modismo tomou conta da opinião pública, tornando consenso geral de que as tábuas de vidro eram melhores, mais limpas e eficientes. Assim, a arena do grande evento foi trocada por uma de vidro.
Isso implicou num desconforto muito grande para dois facões. Mudanças foram necessárias no modo de atuar, pois o vidro reagia de maneia bem diferente à pressão do corte. Dessa vez foi o Rebite Dourado que descobriu uma nova maneira de cortar, pressionando o pão por igual, de cima para baixo. O seu mestre muito o elogiou e adotou também a nova técnica.
Porém, em pouco tempo perceberam uma coisa terrível: a tábua de vidro cegava o gume dos facões. Providências teriam de ser tomadas, imediatamente.
Como a antiga tábua já tinha sido descartada e não havia tempo de encomendar outra, foi requisitada a pequena tábua da churrasqueira, que era bem menor, acarretando a necessidade de nova adaptação para dispor as tirinhas cortadas. Felizmente elas couberam no espaço disponível, e a pequena arena acabou se tornando definitiva. Atualmente todos os torneios são promovidos ali.
Há quem diga que Rebite Dourado superou o mestre, aprendendo toda a sua técnica e até inventado outras. Mas ele próprio contesta e reafirma incansavelmente que deve tudo ao seu mestre e amigo. Mesmo assim, igualou o seu recorde de 19 tirinhas, e em seguida o superou, primeiro com 20, logo após com inimagináveis 23 tirinhas.
 Esse recorde permaneceu durante muito tempo, e a popularidade de Rebite Dourado aumentou tanto que já era tratado pelo público como “o grande campeão”. Enquanto seu mestre, pouco a pouco, começou a cair no ostracismo.
Tal situação parecia não mais se alterar, até o torneio realizado hoje, quando aconteceu o inesperado: num dado momento, Rebite Prata percebeu as condições favoráveis do pão e do queijo, e partiu decididamente para a conquista do recorde. Tentativas como essa, quase sempre são frustradas, mas dessa vez foi diferente: a contagem final constatou um novo recorde mundial. O grande mestre conseguiu o incrível número de 24 tirinhas!
Rebite Prata foi ovacionado pelo público e muito abraçado pelo amigo, que em nada se mostrou ressabiado. Muito ao contrário, estava sinceramente orgulhoso pelo feito do seu mestre.

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