HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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• A SAGA DOS FACÕES
Capítulo I
Novo recorde mundial
O recorde do grande Torneio das Tirinhas, que há muito permanecia de 23, foi superado hoje. O feito coube ao facão Rebite Prata. Desde o corte da primeira tirinha, o público começou a desconfiar que ele tentaria o recorde, apesar de ter declarado que a sua intenção era apenas fazer um trabalho saboroso. Somente lá pelo meio do percurso, quando vislumbrou reais possibilidades, foi que ele admitiu publicamente estar tentando o recorde.
Depois de dividir com cuidado e técnica o último pedacinho de pão,
antes da contagem, Rebite Prata declarou modestamente ao repórter de pista, que
esperava no máximo 20 tirinhas. Mas a contagem oficial foi mesmo de 24,
superando em uma o antigo recorde.
Na festa, além de muitos admiradores e da diretoria, compareceu o
facão Rebite Dourado, seu amigo inseparável desde o tempo de criança.
A história dos dois facões é comovente. Habitavam a mesma gaveta
no armário da cozinha, juntamente com um facão de cabo vermelho, e outros menores.
O grande passatempo de todos era assistir diariamente pela televisão o Torneio
das Tirinhas, realizado na arena da tábua de queijos, que era protagonizado
pelas Facas Nobres da gaveta ao lado.
O torneio nessa época, disputado a cada dia por uma faca diferente,
era praticamente igual ao atual. Consistia em cortar metade de um pão árabe
recheado de queijo branco, em finas tirinhas. No início, o queijo era puro, mas
depois passou a ser regado com diversos temperos (gotas de azeite, ervas finas
etc.), e atualmente apenas com orégano. Depois de cortadas, as tirinhas são
contadas, e a quantidade delas determina o recorde a ser superado.
Mas o espetáculo não para aí. Cada tira é transportada
cuidadosamente da tábua para uma bandeja, pela mesma faca que fez os cortes. A
disposição das tirinhas na bandeja é um espetáculo à parte, formando desenhos
decorativos, mas deixando sempre um espaço livre que permita pegar a bandeja,
depois de quente. Para essa operação, a “pegada de bandeja”, uma pequena toalha
permanece no seu posto, atenta, junto ao fogão, durante todo o evento.
Naquele tempo das Facas Nobres, a competição pela quebra de
recordes era ainda mais acirrada. Um fantástico sucesso comercial, com o
público aumentando a cada espetáculo. Porém, havia um ponto extremamente
negativo: as constantes brigas entre as Facas Nobres e as Facas Inferiores,
devido à enorme competição entre as duas classes. Tais desavenças prejudicaram
a popularidade e o prestígio do torneio a tal ponto, que chegou ser cogitado o
cancelamento do espetáculo. Então, a direção-geral fez uma reunião
extraordinária para encontrar uma possível solução, e tomaram uma medida
drástica: resolveram aposentar as facas, e fazer um teste com um facão. Com
apenas um protagonista, seria o fim das brigas. A ideia foi imediatamente
aprovada e posta em prática, agendando-se os testes iniciais.
Em votação, foi escolhido o facão de rebites prateados para o
teste de eficiência. Exatamente aquele que morava com os outros, na gaveta do
armário, e só era usado para funções triviais.
No teste, ele revelou-se perfeito para a função, em tudo se
mostrando superior às facas: na facilidade de corte, no domínio do queijo e no
transporte final para a bandeja. Eleito por unanimidade, o Rebite Prata passou
a ser o titular da função, eliminando completamente o uso das antigas facas.
O torneio daí em diante transcorreu em perfeita paz, sem brigas
nem disputas. O público diminuiu bastante, como era previsto, pois estavam
acostumados com as facas, bem menores. Mas com a notória eficiência do facão,
que adquiria mais técnica a cada exibição, voltou a lotar as arquibancadas. Em
pouco tempo o Rebite Prata, como ficou conhecido, igualou o recorde das Facas
Nobres, de 17 tirinhas.
Detalhe interessante, é que no final de um evento, o pote de
orégano declarou ao repórter que, diariamente, depois de cumprir sua tarefa de
pulverizar o queijo, assistia o resto do espetáculo pela TV. Ele se mostrou tão
interessado, que a direção do evento, ao assistir a entrevista, lhe concedeu a
permanência cativa ao lado da tábua de corte, durante todo o desenrolar do
torneio. Ele hoje é um personagem querido e apreciado por todos.
Na gaveta onde reside, o Rebite Prata passou a ser venerado até
pelos outros facões, que reconheceram seu talento. Nada de ciúme por ele ter
sido o escolhido. Seus amigos compreenderam que foi uma escolha acertada e
passaram a considerá-lo um herói, demonstrando verdadeira grandeza de espírito.
Por sua vez, o já famoso Rebite Prata, sempre teve uma constante
preocupação com os outros. Achava injusta a sua escolha sem que todos fossem
testados. Sobretudo o seu maior amigo, Rebite Dourado, que possuía o mesmo
tamanho e o mesmo potencial. Não comentou nada, mas foi amadurecendo a ideia de
dividir a função com o amigo.
Chegou um momento em que propôs à diretoria fazer uma parceria com
o outro facão. Garantiu que não haveria brigas, no máximo uma disputa sadia,
apenas esportiva. Como sua popularidade estava em alta e merecia grande
consideração dos organizadores do evento, sua proposta foi aceita, por um
período de avaliação.
Não é preciso dizer da euforia do amigo ao receber a notícia. Na
estreia, abraçaram-se efusivamente, tornando pública a amizade de tantos anos.
Ele saiu-se tão bem que foi efetivado por unanimidade. O grande torneio passou
então a contar com dois participantes: Rebite Prata e Rebite Dourado.
O novo facão, durante as suas atuações, muito aprendeu com seu
amigo. E não escondia isso, ao contrário, sempre o julgou um mestre, mesmo
quando igualou seu recorde, que nessa altura era de 19 tirinhas.
Ele era considerado muito talentoso, mas um pouco estabanado,
derrubando muitas vezes pedacinhos de queijo no transporte para a badeja.
Rebite Prata, sim, era por todos considerado um grande mestre. Tinha uma
técnica inigualável para o corte, sem “derrapar”, sem entornar nada. E no
transporte, fazia a operação com tal delicadeza que sempre arrancava aplausos e
gritos da torcida.
Chegou o tempo da mudança de tábuas.
Um novo modismo tomou conta da opinião pública, tornando consenso
geral de que as tábuas de vidro eram melhores, mais limpas e eficientes. Assim,
a arena do grande evento foi trocada por uma de vidro.
Isso implicou num desconforto muito grande para dois facões.
Mudanças foram necessárias no modo de atuar, pois o vidro reagia de maneia bem
diferente à pressão do corte. Dessa vez foi o Rebite Dourado que descobriu uma
nova maneira de cortar, pressionando o pão por igual, de cima para baixo. O seu
mestre muito o elogiou e adotou também a nova técnica.
Porém, em pouco tempo perceberam uma coisa terrível: a tábua de
vidro cegava o gume dos facões. Providências teriam de ser tomadas,
imediatamente.
Como a antiga tábua já tinha sido descartada e não havia tempo de
encomendar outra, foi requisitada a pequena tábua da churrasqueira, que era bem
menor, acarretando a necessidade de nova adaptação para dispor as tirinhas
cortadas. Felizmente elas couberam no espaço disponível, e a pequena arena
acabou se tornando definitiva. Atualmente todos os torneios são promovidos ali.
Há quem diga que Rebite Dourado superou o mestre, aprendendo toda
a sua técnica e até inventado outras. Mas ele próprio contesta e reafirma
incansavelmente que deve tudo ao seu mestre e amigo. Mesmo assim, igualou o seu
recorde de 19 tirinhas, e em seguida o superou, primeiro com 20, logo após com
inimagináveis 23 tirinhas.
Esse recorde permaneceu
durante muito tempo, e a popularidade de Rebite Dourado aumentou tanto que já
era tratado pelo público como “o grande campeão”. Enquanto seu mestre, pouco a
pouco, começou a cair no ostracismo.
Tal situação parecia não mais se alterar, até o torneio realizado
hoje, quando aconteceu o inesperado: num dado momento, Rebite Prata percebeu as
condições favoráveis do pão e do queijo, e partiu decididamente para a
conquista do recorde. Tentativas como essa, quase sempre são frustradas, mas
dessa vez foi diferente: a contagem final constatou um novo recorde mundial. O
grande mestre conseguiu o incrível número de 24 tirinhas!
Rebite Prata foi ovacionado pelo público e muito abraçado pelo amigo,
que em nada se mostrou ressabiado. Muito ao contrário, estava sinceramente
orgulhoso pelo feito do seu mestre.
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