Esta seção publicará periodicamente histórias com objetos como personagens.
Antes de decidir publicar, mostrei o primeiro texto ao escritor e poeta Nei Leandro de Castro, que me devolveu com a seguinte opinião:
"Este é o texto mais doido que li nos últimos dezessete anos e três meses."
• Os renegados
Existia um faqueiro de qualidade inferior ao que era usado na mesa. Os cabos dos garfos e colheres eram arredondados na ponta e a espessura do metal bem mais fina, e por isso renegados, guardados numa gaveta onde não se mexia, à espera, talvez, de serem doados.
Sonhavam com um final melhor, sonhavam em ser aceitos entre os
talheres principais e ter a mesma função que eles. Esse sonho foi em vão
durante muito tempo, e o desânimo já começava a se abater entre todas as peças
do pequeno faqueiro. Mas, certa vez, chegou a tão sonhada oportunidade.
Foi num sábado, na hora de amassar a banana para o complemento do
café da manhã. Os cabos dos garfos principais, toda vez comprimiam o pulso, de
modo desagradável. Então ocorreu a ideia de experimentar essa função com os
talheres renegados, que tinham a ponta arredondada.
Foi perfeito. Eram muito mais confortáveis para aquela operação. A
partir daí, garfos, colheres e facas, que antes estavam praticamente no lixo,
foram requisitados para o Amassamento de Banana. Exclusivamente para isso e
nada mais. As facas não seriam necessárias, portanto deveriam permanecer como
estavam, abandonadas.
Essa mudança radical gerou um drama sem precedentes. Os garfos e
colheres se solidarizaram com as facas abandonadas, que chagaram a suplicar
pela permissão de acompanhar os outros. Era uma questão de humanidade. Um grupo
que nasceu e viveu junto durante tantos anos não podia se separar assim.
Tanto pediram, tanto protestaram que, por compaixão, as facas
acabaram sendo incluídas no grupo. Passaram todos a habitar a gaveta dos
talheres principais, mas isso causou um problema oposto. Garfos, facas e
colheres do primeiro escalão, revoltados com a situação que consideravam
humilhante, deram entrevistas na mídia, nas quais francamente se diziam
superiores aos recém chegados, e estavam indignados em se misturar com aquela
classe inferior.
Gritaram, fizeram passeatas de protesto e, afinal, houve um
acordo. Ficou estabelecido que ganhariam oficialmente um título, definindo sua
condição de superior. Ganhariam o título de Talheres Nobres e teriam prioridade
absoluta para todas as tarefas da mesa, com a única e exclusiva exceção do
Amassamento de Bananas. Especificamente para essa função seria permitido o uso
das colheres e garfos inferiores.
Firmou-se o acordo numa cerimônia pública, com discursos e
assinaturas de ambas as partes.
E o tempo foi passando, mas não sem incidentes. Na prática, os
Talheres Nobres tentaram impor a condição de que, no momento da mão escolher a
colher e o garfo para o Amassamento de Bananas, quem se apresentasse na frente
seria escolhido.
Estranhamente, começou a vigorar essa lei arbitrária, à qual os
fiscais cruzaram os braços, fizeram vista grossa. Cada vez que se ia buscar na
gaveta o garfo e a colher para o Amassamento de Banana, os Nobres se colocavam
na frente dos outros e impunham a sua escolha.
As peças inferiores, reclamando seu direito, disputavam com
determinação e até com violência o seu lugar, e, algumas vezes tinham êxito.
O ambiente se tornou muito tenso, não raramente precisando da
interferência policial. Com o passar do tempo, no entanto, cansou-se de tanta
briga. Aos poucos, os Talheres Nobres foram aceitando a situação,
principalmente porque percebiam que os inferiores sabiam “se colocar em seu
lugar” e nunca reclamavam outra função que não fosse aquela.
Os garfos e as colheres inferiores, de cabos arredondados e metal
fino, acabaram podendo fazer seu trabalho em paz. Hoje em dia, pode-se dizer
que os dois grupos se respeitam e mantêm uma relação bastante cordial.
Entre os inferiores, nasceram relações amorosas de alguns garfos
por algumas colheres, pois no Amassamento de Bananas, sempre trabalhavam em
dupla, o garfo amassando e a colher colocando a farinha de aveia para misturar.
O casal sempre ia junto para a mesa, e voltava também junto no
prato, para serem lavados. Muitas vezes faziam essa viagem, da mesa para a pia
da cozinha, o tempo inteiro entrelaçados. Era muito romântico.
As facas inferiores também lucraram com tudo isso. Apesar de não
participarem do Amassamento de Bananas, passaram a habitar definitivamente a
gaveta principal. Conformaram-se em permanecer na reserva, para qualquer
eventualidade. A paz reinou finalmente na gaveta dos talheres.
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