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quarta-feira, 3 de julho de 2019

1 • ARTIGO • Nós, os animais



NÓS, OS ANIMAIS


“O homem é o macaco que não deu certo”
Millôr Fernandes

O ser humano é um animal racional. Ele mesmo chegou a essa conclusão, ao ter consciência de que existia, e por isso se coloca, por seu próprio arbítrio, acima dos outros animais do Planeta.
Porém, em muitos aspectos da inteligência, o ser humano não parece ocupar um patamar tão superior quanto imagina. O fato de o Homo sapiens ter sido contemplado com o raciocínio, sem dúvida lhe permitiu, através dos milênios de existência, inventar e desenvolver a linguagem, as ciências e as artes, construir cidades e produzir todas as coisas que conhecemos. A tudo isso chamamos de progresso. 
Mas, fazendo uso justamente desse exclusivo dom de raciocinar, ocorre uma pergunta fundamental: o que será o progresso? Qual o critério para considerarmos todas as conquistas humanas como um verdadeiro progresso?  
Tanto nós quanto os outros animais, compartilhamos a vida numa grande nave que viaja pelo Cosmo, à qual denominamos Planeta Terra. Estamos, portanto, todos no mesmo barco, e cabe a nós encontrar a maneira mais confortável possível de viver. Na qualidade de únicos animais racionais, é nossa responsabilidade canalizar os benefícios produzidos pela inteligência a favor da vida no Planeta. 
Parece óbvio, portanto, que todo o progresso científico e cultural, somente terá sentido e merecerá o nome de progresso, se a sua meta for a de promover o bem-viver e a felicidade da a espécie humana e também a harmonia com as outras espécies desse mesmo habitat. Caso contrário poderíamos, sem receio, chamar de atraso.
No entanto, nós, detentores do raciocínio –, razão que nos permite considerar superiores –, infelizmente ainda não somos capazes de pensar em nossa própria espécie como um todo, e passamos a existência, egoistamente, lutando pelo nosso bem-estar pessoal, exatamente como fazem os irracionais. Vivemos divididos em países, estados e bairros, em ruas e lares, cheios de medo e agressividade, competindo uns com os outros pelo domínio do poder e pelo acúmulo de riqueza.
Os animais irracionais também vivem em grupos, mas de forma harmoniosa com a natureza, enquanto nós, com todo o conhecimento que adquirimos, não aprendemos ainda a manter o equilíbrio ecológico. Já nos demos conta da importância vital desse equilíbrio para o Planeta, mas assim mesmo continuamos destruindo a harmonia dos ecossistemas, poluindo o ar, transferindo animais de seus habitats naturais, exterminando espécies inteiras, mudando leitos de rios na construção de hidroelétricas e até explodindo bombas nucleares, para afirmar nosso predomínio bélico.
E nós é que somos inteligentes e superiores...
Criamos e desenvolvemos a Filosofia, a Psicologia, a Sociologia, e nenhuma dessas ciências foi capaz de nos ensinar a compreendermos uns aos outros. Servem mais para alimentar nossa vaidade intelectual, fortalecendo o poder cultural, para com ele podermos dominar os menos letrados. 
Na evolução das sociedades, formaram-se regimes antagônicos e conflitantes, como o comunismo e o capitalismo. Todos se consideram ideais, mas a verdade é que nenhum deles tornou a vida da população melhor e mais feliz. Nenhum conseguiu extinguir a competição entre as pessoas, a prepotência e a tirania dos governantes. 
Vivemos constantemente em conflitos e guerras. Guerras pela supremacia de regimes políticos; guerras pela conquista de territórios e riquezas; e até mesmo em sangrentas guerras santas, em nome do mesmo Deus que dizemos pregar o amor ao próximo, a tolerância, a compaixão e o altruísmo.  
E nós é que somos inteligentes e superiores... 
Depois de todo o progresso científico e tecnológico alcançado, do enorme grau de conhecimento que adquirimos, não sabemos ainda verdadeiramente o que é a vida. 
Apesar de nos maravilharmos com o avanço da Medicina, com os transplantes, e  atualmente com a Genética, a ciência médica ainda não foi capaz de dominar a vida, ou seja, de extinguir definitivamente as doenças. Está muito longe disso. O máximo que consegue, em alguns casos, é prolongar a vida durante algum tempo. Muitas vezes, com o paciente prostrado numa cama, em estado vegetativo, tendo as funções vitais mantidas por máquinas, durante anos ou décadas, para orgulho dos inventores desses recursos, mas à custa de enorme sofrimento do paciente. 
O principal motivo desse verdadeiro atraso é que, no nosso atual estado evolutivo, toda descoberta científica só pode ter êxito se gerar lucro. E como a extinção total de doenças traria prejuízo a quem vive da fabricação e venda de remédios, o financiamento de pesquisas científicas com essa finalidade é regulado por interesses comerciais.
E nós é que somos inteligentes e superiores...
Pássaros, baleias e outros animais percorrem milhares de quilômetros para encontrar um local adequado às suas vidas, confiando somente nos seus sentidos. Nós, racionais, só conseguimos alcançar regiões distantes, se auxiliados por bússolas e radares. E apesar de toda a tecnologia que dispomos, vivemos reclamando do frio, do calor, da chuva ou da falta de chuva, do vento ou da calmaria, enquanto os animais irracionais rapidamente se adaptam a tudo isso, sem roupas nem equipamentos especiais.
Nós, que possuímos a inteligência e o discernimento, ao contrário de cultivarmos a solidariedade e o altruísmo, inventamos motivos para nos matar mutuamente e às outras espécies. Matamos por vingança, por esporte, por vaidade, por mera perversidade e até por prazer. O sadismo e a maldade são qualidades exclusivas dos humanos.
Colocamos os outros animais num nível tão abaixo de nós, que perdemos o respeito por suas vidas. Nós os torturamos e matamos para fabricar alimentos e para experiências científicas. Oferecemos animais para crianças os maltratarem e muitas vezes achamos isso engraçado.
E nós é que somos inteligentes e superiores...
Cabe, afinal, outra pergunta fundamental: apenas a capacidade de pensar, será suficiente para nos fazer superior aos outros animais? Não importa que pensamentos serão esses? 
Poderá ser o pensamento de Buda e de Cristo ensinando sobre a vida, ou o pensamento de um matador de focas, calculando quanto lucrará com as peles? Igualmente poderá ser o pensamento de Einstein sobre a relatividade das coisas, ou o que Stalin pensou ao ordenar o genocídio na floresta de Katin? Apenas o ato de pensar, seja lá o que se pense, significará uma inteligência superior? Não deveria ser levada em conta a qualidade do pensamento, como sinal de superioridade?
Na verdade, o ato de raciocinar denota apenas uma das formas da inteligência se manifestar, não uma superioridade. A inteligência dos animais irracionais manifesta-se de outras formas, com certos aspectos bem mais desenvolvidos do que a nossa. 
É certo que os animais irracionais, guiados por instintos, apesar de demonstrarem solidariedade e afeto em inúmeras circunstâncias, também se digladiam e se matam. Ainda assim, cada animal mata diretamente o outro, enquanto nós matamos milhares de uma só vez, com as armas que criamos.  
No decorrer de milênios de existência, tivemos tempo de sobra para evoluir até nos tornarmos incapazes de matar e de roubar. Já deveríamos ter extinguido dos nossos cérebros essas perversas capacidades. Nossa espécie humana somente dará um salto na evolução, colocando-nos verdadeiramente acima dos outros animais, quando não matarmos nem roubarmos mais, e aprendermos a conservar em harmonia o nosso habitat. Quando deixarmos de sentir ódio e medo, e passamos a cultivar o amor ao próximo, colaborando, em vez de competir com nossos semelhantes.

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2 • HISTÓRIAS DAS COISAS • O outro pincel



O OUTRO PINCEL

Era um pincel de barba comum. Todo bege, mas tão clarinho que parecia branco. Por isso foi batizado de Marfim. Seus pelos também claros, fartos, formavam quase uma bola sobre o tronco. Há meses que Marfim estava numa prateleira da drogaria, junto com estojos, vidros de loção e um monte de outros produtos. Mas não queria envelhecer ali, sem jamais cumprir sua missão de espalhar espuma em algum rosto, por isso cultivava a esperança de ser comprado por alguém. Passava o dia inteiro sonhando com esse momento, sabia que estava preparado, lidaria muito bem com a espuma e a água, quando chegasse a hora. “Se é que vai chegar...” – Pensava, em momentos de depressão, quando duvidava de sua sorte. 
Aconteceu repentinamente. Pouco antes do anoitecer viu-se agarrado pelas mãos da funcionária da farmácia, e logo se sentiu embrulhado. Pelo tipo de papel percebeu que não iria ser oferecido de presente, como desejava. “Mas, que me importa?” – Pensou. O que lhe interessava naquele momento é que o sonho de morar num banheiro, ao lado de uma lâmina e de uma bisnaga de creme, finalmente estava se realizando. Curioso e bastante apreensivo, tentava adivinhar como seria o armário: luxuoso, confortável... ou velho, de trinco quebrado... “Ah, meu Deus, o que eu menos quero na vida é habitar um armário sujo!”
Marfim só conseguiu relaxar quando ouviu o ruído macio do motor do carro afastando-se da loja. Um ótimo sinal: a casa para onde era levado não devia ser tão ruim...
Em pouco tempo viu-se desembrulhado e colocado numa bela prateleira de vidro. Ao lado, havia um barbeador novinho... e dos bons! “Graças!” – Murmurou baixinho. “A sorte está me sorrindo...”
Marfim começou a conhecer seus companheiros. Barbeador sorriu discretamente e lhe ofereceu boas-vindas. “Qual o seu nome?”, perguntou amavelmente.
“Eu me chamo Marfim.”
“Que belo nome! É um nome nobre!” – Elogiou, e em seguida lhe apresentou a Bisnaga de Creme, já uma senhora, com quem ele iria trabalhar em dupla. Bisnaga não era de muitas falas, apenas lhe fez um aceno amigável.
De repente, Marfim compreendeu a razão daquela reserva: ao fundo, calado e circunspecto, havia um outro pincel, bem magro, cinza escuro e com os pelos negros. Sentiu um calafrio ao se deparar com aquela figura silenciosa, quase macabra. Era mesmo muito esquisito o tal pincel: quase o dobro da sua altura, porém fino e com poucos pelos. 
“Como poderia, assim tão magro, espalhar espuma?” – Ficou pensando. “E qual seria a finalidade de colocarem dois pinceis no mesmo armário?” – Esta sim, era uma preocupação que ainda iria dar “panos para manga”...
Barbeador, compreendendo a curiosidade de Marfim, esclareceu, quase sussurrando, que aquele era o antigo pincel e foi posto de lado porque soltava pelos. Discretamente e bem baixinho, contou-lhe toda a história: “Ele era o pincel de estimação do Administrador – o dono da casa –, por ser muito semelhante ao do seu falecido pai. Por isso era tratado como rei, ocupava o lugar que bem quisesse, escolhia o creme de sua preferência, enfim, tinha todas as regalias. Conosco era muito prepotente, praticamente só nos dirigia a palavra para exigir coisas. Determinava o nosso lugar no armário, controlava até a nossa maneira de atuar! 
Ele teve sua época de esplendor. Só que um dia, sem nenhuma explicação, começou a soltar pelos. Depois da barba feita, a pele ficava cheia de pelos, e o Administrador tinha de lavar o rosto várias vezes. Isso causava um grande incômodo. O Administrador tolerou até onde pôde, mas em dado momento não foi mais possível. 
Foi um grande transtorno. O Cinza – como o chamamos –, acostumado a ser rei, tornou-se um frangalho. Em pouco mais de um mês, seus pelos se reduziram pela metade. Ficou assim, magro, praticamente imprestável, mas nem pensamos em lhe oferecer ajuda... Também, em nada poderíamos ajudar. ”
Barbeador chegou bem perto de seu ouvido, tapou a boca com a mão e lhe disse, ainda mais baixinho: “O Administrador gosta tanto do Cinza, que não se desfez dele. Deixou que ficasse ali no canto, e acho que vai continuar sempre ali. Relutou muito em comprar outro pincel, mas acabou comprando. Por isso é que você está aqui...” 
Depois, Barbeador lhe falou da Loção Pós-Barba, que habitava o compartimento do outro lado do espelho: “Ela é lindíssima e tem poderes supranormais! Dizem que o perfume da sua loção opera milagres!” – E ficou de apresentá-la no dia seguinte, o que acabou não acontecendo.
Não demorou muito e escureceu. Chegara a noite, que foi bastante incômoda para Marfim, com a presença permanente e quase macabra do Cinza, ali pertinho, imóvel, calado, e com a cara amarrada. Em contrapartida, a felicidade de ter encontrado finalmente um lar, era também muito grande.
Na manhã seguinte, antes das oito horas, surgiu no banheiro o Administrador. Marfim já havia sido prevenido de que, logo após o banho de chuveiro, o Administrador costumava se barbear. Por isso, enquanto ouvia o barulho do chuveiro, Marfim começou a se preparar para entrar em ação. Reparou logo que Bisnaga de Creme era de uma boa marca, e seu creme prometia uma espuma abundante. Parecia que tudo ia dar certo.
Chegou finalmente a estreia tão esperada. Marfim rodopiou pela pele, em círculos, transformando em espuma o creme fornecido pela Bisnaga, espalhando-o por todo o rosto. Marfim fez tudo perfeito, até o final, quando foi lavado, sacudido e guardado novamente no seu lugar. 
O último ato dos trabalhos, logo após, foi protagonizado pela Loção Pós-Barba. Cumprindo com perfeição a sua parte, derramou pequenos jatos de líquido perfumado sobre o rosto do Administrador. Devido à crença geral nos seus poderes sobrenaturais, Marfim prestou bastante atenção. A Loção tinha forma e cor muito bonitas e atraentes. Esperava um dia poder conhecê-la pessoalmente.  
Afinal, o evento foi um grande sucesso. Já no armário, Marfim recebeu cumprimentos efusivos do Barbeador, agora seu amigo, e até arrancou elogios da sisuda Bisnaga de Creme, que considerou sua atuação decisiva para a abundância da espuma. 
Ouviu, ao longe, a voz do Administrador agradecendo à esposa “a escolha perfeita’ que fizera na farmácia. Marfim ficou sabendo então, que foi ela a responsável por sua compra. A felicidade só não se completou, por conta da figura misteriosa do pincel Cinza, como sempre mudo e quieto, no canto da prateleira. 
E assim o tempo foi passando. Suas apresentações costumavam arrancar elogios do Administrador, revelados nos comentários com a esposa. 
Certo dia, finalmente Barbeador cumpriu a antiga promessa. Momentos antes do início das operações, apresentou Marfim à bela Loção Pós-Barba, que até então ele só vira de relance. Tímido, não sabia o que dizer. 
“Você faz jus aos elogios. É mesmo muito cheirosa” – Foi o que lhe ocorreu. Ela sorriu: “Obrigada. Eu me sinto lisonjeada.” 
Marfim então foi mais objetivo: “É verdade que você faz milagres?” 
“Não são bem milagres... Mas costumo conseguir refazer o que se desfez.” – Respondeu, enigmaticamente. Esse foi o único diálogo possível, Marfim logo foi requisitado pelo Administrador a entrar em ação.
Passaram-se meses nessa mesma rotina.  
Porém, coisas ruins não marcam hora para acontecer. E um incidente ameaçou transformar a vida de Marfim numa tragédia. Ocorreu numa manhã, logo após a ação do barbear. Ao ser lavado, sentiu que vários pelos se soltavam, espalhando-se pela pia. Marfim não acreditava no que via. Terminado o barbear, o Administrador levou a mão ao rosto e colheu vários pelos grudados na sua pele. 
Imediatamente gritou: “Merda!” – E jogou Marfim com força dentro da pia, por sorte não quebrando sua base. Ele rolou até o ralo, e ficou imóvel por um bom tempo, semi mergulhado na poça d’água que se formara. Ouviu a porta bater e os passos do Administrador, afastando-se. Mas em seguida ele voltou, e o pegou para examinar. Puxou alguns fios, que se soltaram. Então o colocou no armário e foi-se embora. 
Fez-se um silêncio mortal no interior do armário. Nem o Barbeador, nem a Bisnaga de Creme, amigos de Marfim, encontravam o que dizer para aliviar a tensão. Marfim encolheu-se num canto, deprimido, vendo o seu mundo desabar.
De repente, ouviu uma voz grossa e pausada vinda do fundo do armário: “Então, aconteceu com você também...” – A frase ficou no ar, incompleta, mas pesada. Era a voz do Cinza, soando pela primeira vez em tantos meses. “Eu sei o que você está sentindo... Eu já passei por isso.”
Marfim não teve coragem de olhar nem de dizer nada. Os outros tampouco. 
Pausadamente, o Cinza prosseguiu: “Ele vai lhe dar ainda algumas oportunidades... Vai alimentar esperança... Vai tentar acreditar que tudo foi um sonho...”
Marfim, imóvel, ouvia aquilo como uma sentença de morte.
“Mas pouco a pouco, a cada manhã, você verá a realidade... Esses seus lindos pelos loiros irão caindo... caindo....” – A voz rouca e pausada se tornava cada vez mais ameaçadora. “Você verá a esperança se desfazer... como uma bruma. E os seus lindos pelos loiros virar... fiapos.” 
“Não!” – Gritou Marfim. “Isso não pode acontecer comigo!”
Barbeador o abraçou, tentando aliviar sua dor. A Bisnaga de Creme, que quase não falava, também lhe fez um carinho: “Meu filho, seja forte, você vai conseguir sair dessa. Eu vou fazer uma prece à Loção Pós-Barba, ela faz milagres!” 
Nesse momento, uma gargalhada rouca ecoou pelas paredes de vidro do armário. Era o Cinza sentindo-se recompensado com a desgraça do seu concorrente.
Logo veio a tarde e a noite escureceu rapidamente. O silêncio absoluto, em parte acalmou os ânimos, mas também fez aumentar a tristeza de Marfim. Nem ao menos uma esperança, como previu o Cinza em seu discurso macabro, ele conseguiu sentir. Ao contrário, estava convencido de que sua vida chegara ao fim. 
Amanheceu, e mais cedo do que de costume, o Administrador iniciou os trabalhos. Procedeu da maneira habitual, como se na véspera nada tivesse acontecido. Marfim, totalmente inseguro, teve os movimentos bloqueados no espalhar a espuma. Isso piorou a situação, pois levou o Administrador a pressionar mais seus pelos contra o rosto.
Marfim foi novamente examinado, teve mais pelos arrancados pelos dedos do Administrador, e foi jogado novamente na pia. Em seguida o Administrador pegou a Loção Pós-Barba, mas como no seu rosto ainda havia pelos do pincel para retirar, deixou momentaneamente a Loção na pia. Por alguns instantes, Marfim e a Loção Pós-barba ficaram lado a lado. 
Aproveitando aquele momento único, ela lhe disse: “Molha-te! A água vai te salvar!” 
Foi tudo o que conseguiu dizer, antes de ser segura pela mão do Administrador, para iniciar sua função. Mas o suficiente para Marfim guardar suas palavras e passar o resto do dia tentando descobrir o significado. 
Daí em diante, Marfim não se importou com mais nada. Nem com as zombarias do Cinza (“Seus lindos pelos loiros vão virar fiapos!”), nem com suas gargalhadas de vingança. Tampouco com as palavras de consolo de seus amigos, que na verdade mais o entristeciam. Marfim só pensava em decifrar o enigma que a Loção lhe deixara. Tinha fé que naquelas palavras estava a chave da sua salvação! 
Assim, permaneceu toda a tarde e adormeceu antes do escurecer. Acordou com os ruídos habituais do início das funções. O som do chuveiro, depois a preparação para o barbear, e finalmente a retirada do Barbeador, da Bisnaga de Creme e dele próprio. 
Um momento antes de ser retirado, olhou para baixo e viu que a pia estava cheia de água. Num reflexo, lembrou-se das palavras da Loção: “Molha-te! A água vai te salvar!” – E, sem pensar em mais nada, rodopiou e jogou-se na pia.
Quando o Administrador o pegou, estava encharcado. Talvez por isso, espremeu nele a porção de creme, e não no rosto, como costumava fazer.
Essa mudança foi vital.
Acreditando tratar-se de um milagre, Marfim esmerou-se no espalhar o creme, formando ainda mais espuma do que de costume. Não sentiu em momento algum os pelos se desprenderem de seu corpo.
Terminado o barbear, o Administrador esvaziou a pia e não encontrou nenhum pelo. Passou as mãos pelo rosto e nada. Então murmurou para si: “É isso! Ele tem que estar molhado!” 
Dia seguinte, a pia não estava com água, mas o Administrador resolveu testar da mesma maneira: primeiramente molhou Marfim na torneira para depois colocar nele o creme. Só então o levou ao rosto. 
Deu certo!
Repetiu esse procedimento nos dias seguintes, com resultados positivos. A partir daí, a vida voltou ao normal. Exibições contínuas e perfeitas fizeram retornar a confiança do Administrador na competência de Marfim. Foi também muito elogiado pelos companheiros, consolidando ainda mais as amizades. 
Marfim apressou-se em encontrar a Loção Pós-Barba, e muito se emocionou ao lhe agradecer ter salvo a sua vida. Loção repetiu o que dissera: “Só consigo refazer o que se desfez.” – E ressaltou que a sua competência já existia antes, só por isso pôde se reafirmar. Disse também que tudo foi resultado de uma forte energia negativa existente no armário, e não precisou citar o nome, para que Marfim entendesse claramente de onde vinha aquele mal. 
“O que posso fazer para dissipar essa energia?” – Perguntou. 
“Uma energia negativa só pode ser anulada por uma outra positiva.” – Respondeu Loção, antes de despedir e se afastar. E Marfim voltou para o armário com novo enigma para decifrar.
Durante aquela noite, concentrou-se em achar uma solução. Quando, de repente, teve uma intuição, não pensou duas vezes: chamou seus amigos, Barbeador e Bisnaga de Creme, e os convocou a mentalizar firmemente que o Administrador daria uma nova oportunidade ao Cinza. 
“Vamos pensar que o Cinza vai ter uma nova oportunidade! Vamos imaginar ele atuando, feliz, sem soltar pelos, e se tornando nosso amigo!” – Tinha tanta convicção no que dizia, que convenceu os dois: passaram o resto da noite imaginando aquela cena, até serem vencidos pelo sono.
Logo amanheceu e tiveram de iniciar as tarefas habituais.
Ao chegar o Administrador, tiveram uma surpresa e tanto: na hora de pegar o pincel, ele foi diretamente ao Cinza. Resolveu fazer com ele um novo teste. Será que a mentalização dos três surtira efeito?
Isso pouco importa, a grande notícia foi o resultado: o Cinza, molhado previamente, não soltou mais pelos, e então o Administrador resolveu alternar o uso dos dois pincéis. 
Marfim e seus amigos voltaram felizes, pois tinham certeza de que isso transformaria totalmente o ambiente do armário. Mais uma vez, resultado das palavras sábias da Loção Pós-Barba. Eis porque tem fama de realizar milagres.
Na volta, passou por eles o Cinza, que já havia recebido a notícia. Estava com outra cara. Até mesmo um sorriso se conseguia adivinhar em suas feições enrugadas. Ele parou defronte ao Marfim e o olhou por alguns momentos. 
“Obrigado” – Disse com a voz embargada. Marfim lhe ofereceu a mão, mas ele devolveu um abraço apertado. Caminharam abraçados até o armário. Barbeador e Bisnaga de Creme os acompanhavam logo atrás, e tinham os olhos molhados. Lágrimas não faltaram nessa comovente comemoração, marcando a nova relação que se iniciava. 

Marfim nunca mais esqueceu daquela frase: “Uma energia negativa só pode ser anulada por uma outra positiva”...

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3 • HUMOR & CARTUNS • O marido traído

Outra anedota retirada do livro
ANEDOTAS POPULARES –  
(anedotas contadas em forma de quadrinhos).  
Diz o cronista Sérgio Cabral no prefácio:
  
“… Agora, com este livro, Claudio Sendin descobriu o óbvio. 
….A história do desenho de humor no Brasil é secular e revelou artistas fantásticos, iguais aos melhores que o mundo já produziu. Como não ocorreu a nenhum deles fazer um livro na base das anedotas? Afinal, a anedota é uma das marcas mais fortes do comportamento do brasileiro. A grande vantagem que este Anedotas Populares leva sobre a piada contada é que ela não se esgota na narração: o leitor poderá divertir-se com a conclusão e, depois, com cada detalhe do desenho.
    Não há dúvida: Claudio Sendin descobriu a pólvora. Ou melhor: o óbvio ululante.”


ANEDOTA 3: O marido traído.  


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4 • ELES SÃO UNS GATOS! • Conforto de um automóvel

 – Ah, como é confortável este carro do meu pai...
(MIGUELITO VALDEZ)

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5 • INFORMAÇÕES PROFISSIONAIS • Sendino

SENDINO
(Claudio Fabiano de Barros Sendin)

• Diretor de arte publicitário, trabalhou em Criação, nas principais agências do Rio de Janeiro, de São Paulo, e num estúdio de publicidade em Barcelona. 
Durante essa fase, participou da criação de campanhas publicitárias para muitas empresas e instituições importantes, entre elas: Volkswagen, Vasp, Gillette, Coca-Cola, Banco do Brasil, Petrobras, Merrel (Cepacol), Fleischmann Royal, Bradesco Seguros, Prefeitura do Rio de Janeiro. 
Algumas dessas campanhas e peças isoladas receberam medalhas de ouro, prata e bronze, no Prêmio Colunistas.

• Cartunista publicitário, criou personagens bem-sucedidos para publicidade, como Bond Boca, da Cepacol, em parceria com o redator Alexandre Machado, e o Bocão, da Fleischmann Royal, em parceria com a equipe de marketing da Norton. Criou todos os cartuns da campanha Minimania, para a Coca-Cola e Bob’s.

• Cartunista editorial, ilustrou muitas matérias e criou uma capa na revista Domingo (do antigo Jornal do Brasil). Na revista Veja Rio, criou 16 capas, muitas ilustrações de matérias, e ilustrou com charges as crônicas do crítico musical Sérgio Cabral, durante mais de 5 anos. Para o jornal O Globo, criou muitas capas para os Cadernos Vestibular

• Diretor de arte editorial, fez os projetos gráficos de várias revistas corporativas: Hospedagem Brasil (para a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis), Rumos Práticos (para o Conapra – Conselho Nacional de Praticagem), Paissandu Notícias (para o Paissandu Atlético Clube – RJ), Biólogos (para o CRBio-02 – Conselho Regional de Biologia), Revista da Casa de Eapaña (Órgão de divulgação da cultura espanhola no Rio de Janeiro), e Revista do Clube Naval (Para o Clube Naval do Rio de Janeiro).  

• Autor de três livros de cartuns: 
A fábrica e o povo (Massao Ohno – Ricardo Redisch Editores), com cartuns que ilustram um texto de Eça de Queirós.
Viagem de volta, (Repro–SP), com desenhos surrealistas de aviões inspirados nos Beatles, e poemas de Nei Leandro de Castro inspirados nos desenhos e nos Beatles.
Anedotas populares (Editora Taurus), com cartuns em forma de quadrinhos sobre anedotas contadas pelo povo.

• Contato com Sendino, através do e-mail:

sendino.claudio@gmail.com