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quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

2 • HISTÓRIAS DAS COISAS • As ideias são azuis




As ideias são azuis

A faquinha Azul cortou a primeira tirinha bem estreita, para economizar espaço. Começou a cortar a segunda, mas de repente, sentiu uma dor fulminante. Sua lâmina separou-se do cabo e ela caiu, já sem vida, no chão da arena. O choque atingiu o público e imediatamente fez ecoar um “ohhh...” por todo o estádio. Facão Prata foi o primeiro a se aproximar, e parecia não acreditar no que via. Serra azul, completamente transtornado, balbuciava, entre lágrimas, o nome da faquinha Azul. O Diretor tentou acalmá-los: “É muito triste! É muito triste... Mas temos que ter calma nessa hora. A vida vai continuar, sempre a vida continua!”.
Até aquele momento, tudo parecia correr às mil maravilhas no Torneio de Tirinhas. Os protagonistas, facão Prata, faquinha Azul e Serra Azul, haviam se tornado muito unidos, lembrando os velhos tempos de amizade com a faca Fininha e o facão Dourado, que também tiveram mortes repentinas. Na época, sobrou no grupo apenas o facão Prata e a faquinha Azul. Ambos muito abatidos com a perda dos amigos, tocaram os espetáculos do jeito que foi possível. O desempenho deles caiu bastante, durante muito tempo, mas afinal conseguiram se superar e atualmente estavam em plena ascensão.
Dias antes, o Prata havia apresentado à faquinha Azul o pequenino facão Serra Azul, que o procurara querendo participar do grupo. A Azul, a princípio relutou em aceitá-lo, devido ao seu corpo pequeno e franzino, e à consequente dificuldade para o corte do queijo. De fato, ele tem essa dificuldade, pois muitas vezes o queijo é maior do que a pequena extensão de sua lâmina. Mas tanto se esforçou, que conseguiu compensar essa deficiência com a habilidade inegável no corte das tirinhas. Faquinha Azul acabou por dar o voto favorável, embora por um período experimental, e Serra Azul foi incorporado ao grupo. Preenchia assim parte da lacuna deixada pela falta dos antigos companheiros.
Durante o último mês, os três se revezaram nas apresentações do Torneio de Tirinhas, e o sucesso foi grande, voltando a lotar o estádio. Serra Azul já começava a conquistar fãs, que se empolgavam com o seu capricho e habilidade em lidar com as migalhas de pão e com os fragmentos de queijo que se soltavam, e sobretudo com o corte preciso e certeiro das tirinhas. E justamente num momento tão positivo, acontece essa tragédia. A faquinha Azul, querida de todos, jaz no chão da arena, diante da enorme plateia. 
“Como se não me bastasse a perda daqueles dois, agora minha melhor amiga resolve também me deixar!” – Lamentava facão Prata no dia seguinte, em sua gaveta, tomado por grande tristeza. Serra Azul, agora seu único companheiro, só pôde dizer, muito emocionado: “Oh, mestre... eu sinto muito... Mas conte comigo. Sou seu amigo também...”  
A faquinha Azul era insubstituível. Começou a carreira há muitos anos, e de forma inusitada. Chegou na casa como um brinde, acoplada à embalagem de um produto. Mas era linda. A esposa do Diretor de Eventos, encantada pela beleza de seu cabinho azul, mesmo sabendo de sua total inexperiência, por mero capricho, colocou-a como protagonista no Torneio de Tirinhas, transferindo o Facão Prata para a distante gaveta da churrasqueira. 
Assim a apresentou ao público: “Esta é a faquinha Azul, que a partir de hoje vai enfeitar os nossos espetáculos.” 
Mas a TV logo correu a entrevistar o facão Prata, na gaveta da churrasqueira, para saber o verdadeiro motivo de seu afastamento. Prata, ao contrário de reclamar e se lamentar, incentivou a faquinha Azul, reconhecendo que ela não teve culpa de nada. Até se dispôs a lhe dar instruções técnicas, se ela quisesse.
A faquinha Azul, agradecida, passou então a tratá-lo de “mestre”. Os conselhos do mestre foram tão eficazes que, na sua estreia, todo o público esperava um fracasso total, mas ela os decepcionou, revelando-se talentosa e conseguindo até arrancar aplausos. Pouco a pouco foi se firmando, e, no mês seguinte, após a volta triunfante do facão Prata, seu mestre e instrutor, faquinha Azul tornou-se uma estrela de sucesso. 
Mas o que a marcou mesmo foram as suas grandes e ousadas ideias.
A primeira foi a criação do Torneios Uno, usando somente um lado do pão. Azul propôs essa ideia quando o Torneio de Tirinhas atravessava uma fase muito em baixa, perdendo público e bilheteria. O Diretor gostou bastante, mas, depois de muito pensar, teve medo de arriscar e não aprovou o projeto.
Pois a faquinha Azul não desistiu. Encontrou outro empresário que gostou e resolveu investir na ideia do Torneios Uno. Não podendo participar diretamente, devido ao seu contrato com o Torneio de Tirinhas, faquinha Azul lançou como protagonista sua prima Fininha, que nunca havia atuado. Foi outra ideia brilhante, pois a faca Fininha acabou famosa, e o Torneios Uno fez tanto sucesso, que por vezes chegou a ofuscar o tradicional Torneio de Tirinhas.  
Daí em diante, o Diretor de Eventos passou a acatar todas as suas sugestões, por mais ousadas que fossem, considerando-as prenúncios de sucesso. “Vamos sentir falta de suas ideias criativas” – Disse ele em seu discurso, no dia seguinte ao fatídico acidente, durante o sepultamento da faquinha Azul. 
Como ele costuma dizer, “A vida sempre continua!” E os espetáculos continuaram, agora com a nova dupla dos facões Prata e Serra Azul – o facãozinho serrilhado. O público correspondeu, levado principalmente pela curiosidade no trabalho do novato Serra Azul. É notória sua dificuldade para cortar o queijo, às vezes “atravessa” o corte, mas em compensação é exímio nos detalhes da “cata de migalhas” e corta cada tirinha com grande precisão. Em geral, agradou bastante ao público. 
A continuidade dos espetáculos foi sofrida, como era de se esperar. Os protagonistas, além de abatidos pelo recente drama que viveram, eram somente uma dupla: um, muito experiente, forte e robusto, e o outro pequenino e ainda principiante, o que suscitou brincadeiras do público, que apelidou o evento de “Torneio do papai e seu filhinho”. Mas isso não chegou a causar problema, pois a frequência do público continuava satisfatória. 
No entanto, havia uma dificuldade verdadeira. A orientação, adotada há algum tempo, priorizando as notas dadas pelo público na Arena do Sabor, em detrimento da antiga conquista de recordes, segundo o número de tirinhas, já não causava mais impacto, e pouco a pouco, o público começou a abandonar o estádio. Estava provado que os recordes na contagem das tirinhas empolgavam mais do que as notas pelo sabor.
Por outro lado, se retornassem ao sistema anterior, a demora no corte das tirinhas, cada vez mais estreitas, também tornaria o espetáculo monótono. O público não tem mais a paciência de antes, deseja agora assistir a um espetáculo ágil. Hoje em dia se exige rapidez em tudo! Principalmente os jovens pensam assim.
Foi aí que, tal qual a faquinha Azul em seus áureos tempos, o Serra Azul revelou seu lado ousado e criativo: apresentou uma sugestão que o Prata gostou muito e encaminhou ao Diretor de Eventos. A ideia era criar uma nova modalidade, dentro do Torneio de Tirinhas: o Torneio de Tirinhas Sub-20.
O Sub-20 permitiria o máximo de 20 tirinhas. Quem ultrapassasse esse limite seria desclassificado. Assim, as tirinhas seriam mais largas, e o corte bem mais rápido. O Diretor imediatamente autorizou. 
E ele estava certo em autorizar, porque a nova modalidade foi mesmo um sucesso. O público adorou! Era uma volta ao antigo critério, porém com o limite de 20 tirinhas, que criava um grande suspense: o de ser ou não classificado. O espetáculo se tornou mais ágil e muito mais empolgante. Palmas para o Serra Azul, que assim vai se tornando um novo ídolo popular.
“Está provado que as grandes ideias são azuis!” – Exclamou o diretor, rindo de satisfação, ao ver o Torneio de Tirinhas novamente no auge do sucesso.


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Envie para: sendino.claudio@gmail.com 

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