HISTÓRIAS DAS COISAS – 13
Pelas lentes da vida
Maron enxergava de longe, Ren só via de perto. Quando um estava no rosto, o outro ficava no bolso. Amigos inseparáveis, passavam o dia separados, somente tarde da noite conseguiam se falar. Quietos, na mesinha de cabeceira, finalmente podiam comentar as façanhas do dia.
Maron era mais seguro, mais senhor de si, e feliz com o seu trabalho. Adorava olhar as paisagens da orla, sempre reparava no contorno das montanhas, que ia diminuindo pouco a pouco, até se juntar com o mar da lagoa. Nos fins de tarde, maravilhava-se com o pôr do Sol, sempre diferente do anterior. Observava os raios de luz transpassando as folhas das árvores, fascinava-se com os pássaros... Achava linda a natureza!
Gostava também de olhar as ruas, os automóveis, aquele monte de gente indo e vindo. Entretinha-se depois com a visão dos botões luminosos do elevador, meio desfocados, pois ele era especialista em ver ao longe. Gostava de ver a porta do elevador se abrir, e logo depois fechar-se novamente. Aguardava ansioso o momento de entrar naquela sala grande, onde podia apreciar muitos rostos em volta da mesa comprida, todos falando muito. Era a costumeira e demorada reunião diária. Bem mais tarde, faria todo o percurso de volta, vendo novamente o elevador, as ruas, o volante e os controles do automóvel. Esses de relance, enquanto através do para-brisa, se assustava um pouco com os inúmeros veículos que cruzavam a avenida velozmente, em direções opostas. Até chegar de volta à sua casa.
Seu amigo Ren, ao contrário, vivia triste. Nas saídas à rua, permanecia quase o tempo todo no bolso, a não ser nos momentos de conferir uma conta, de assinar, ou de ler alguma revista ou jornal. Ele atuava mais em recintos fechados, principalmente à noite, dedicando-se à escrita e ao computador. Acostumou-se com a visão de seu dono, desenhista. Reparava nos detalhes dos esboços, rabiscados a lápis e depois transferidos para o computador, acompanhando de perto os traços riscando a tela, encontrando ou cruzando com outros, até formar uma figura completa. Em seguida assistia cada cor ocupar aos poucos um determinado espaço, até o desenho ficar pronto.
Em outros momentos, seguia bem de perto as palavras de um texto, que às vezes parecia não ter mais fim. Lia páginas e páginas, sempre em close, voltando às vezes para corrigir uma letra digitada errado, colocar uma vírgula ou um sinal qualquer.
Mas apesar de todos esses trabalhos, Ren não era feliz. Faltava-lhe alguma coisa, um objetivo na vida, uma realização pessoal... Não sabia o que, mas não lhe bastava viver sendo somente usado, e mais nada.
Enquanto Ren trabalhava à noite, Maron permanecia na mesa de cabeceira do quarto, quieto, com suas hastes dobradas sob o corpo, pronto para qualquer eventualidade. No entanto, sentia-se tranquilo, feliz com seu trabalho de ver de longe. Não desejava mais nada, não tinha os mesmos questionamentos do amigo.
O tempo passava, um completando o trabalho do outro. E os anos se encarregaram de formar uma sólida amizade entre eles.
Certa noite, Maron chegou com uma notícia preocupante: no dia seguinte iria à ótica, para substituir suas lentes. Essa troca de lentes já havia acontecido antes, por isso não deveria ser motivo de preocupação. No ano passado, os dois foram juntos, e de lá voltaram felizes, ambos enxergando bem melhor. Mas agora havia uma diferença fundamental: Maron iria à ótica sozinho.
“Por que não vamos juntos?” – Perguntou Ren, pressentindo que alguma coisa ruim estava por vir.
“Bobagem” – Comentou Maron, tranquilizando o amigo. “Vou só atualizar o grau da lente, como no ano passado! Depois irá você, na certa!”
“Não sei, Maron... Não sei porque, mas estou muito preocupado...” – Repetia Ren. “Li um artigo sobre uma nova tecnologia, uma lente que tanto enxerga de perto quanto de longe... Uma coisa muito estranha!”
Mas o amigo continuou otimista: “Que nada, Ren, as lentes modernas são de melhor qualidade! Vamos conseguir ver melhor, só isso! Fique tranquilo!”
Ren finalmente sorriu: “É... Deve ser bobagem minha!”
Manhã seguinte, cedinho, lá foi Maron, olhando o intenso movimento do trânsito, em direção à ótica, numa rua do Centro. Ao passar pela vitrine, compadeceu-se ao ver tantos semelhantes seus, ali deitados, aguardando uma oportunidade de enxergar o mundo.
Logo o levaram para o laboratório, e, como numa anestesia geral, tudo se apagou.Quando acordou, a visão era muito estranha. Olhava as coisas de longe e também de perto. E todas estavam nítidas, como nunca tinha visto. Que coisa esquisita!
Foi quando ouviu a voz do vendedor: “O senhor fez uma boa troca, as lentes multifocais são muito melhores!” – Aí ele entendeu tudo: suas novas lentes eram justamente aquelas, das quais o Ren tinha tanto medo!
A cada coisa que focava, mais se surpreendia. E percebeu algo ainda mais estranho: ao olhar para distante através de sua parte superior, tudo era normal, como sempre foi. Mas à medida em que fosse baixando o olhar ia enxergando os detalhes, cada vez com mais nitidez, até se igualar à visão do seu amigo Ren. Uma coisa mágica, inacreditável!
Maron pensou imediatamente no amigo. Durante todo o percurso de volta, tentou arranjar argumentos que justificassem a sobrevivência dos dois. Mas cada vez era mais evidente que ele agora ficaria sozinho. O que seria do Ren? Seria dispensado? Morreria?
Atormentado com tais pensamentos, chegou ao quarto de sua casa. Foi posto ao lado do o amigo, na mesinha de cabeceira, mas antes que pudessem falar qualquer coisa, Ren foi levado ao rosto, por uns breves segundos, para ser testado. Em seguida Ren voltou para a mesinha e ele foi colocado novamente no rosto. Não tiveram tempo sequer de trocar uma palavra.
Maron voltou para a rua e ficou o resto do dia fora de casa. Estava tão aflito com o amigo, que nem se importou com a novidade de enxergar de perto. Não pensava em mais nada ao passar pelas ruas, pela subida do elevador, e durante a costumeira reunião na grande sala. Nenhum prazer sentiu em poder enxergar detalhes, assinar documentos, ler colunas de jornais, tampouco reparou no pôr do Sol. Nada disso conseguiu afastar a preocupação com o seu amigo, que pela primeira vez ficara em casa.
Retornou já no início da noite, muito cansado.
Diante do computador, pela primeira vez, ele – e não o Ren, examinou de perto as palavras dos textos e seguiu os traços de um desenho. Em vez de se alegrar, mais se entristeceu, cheio de compaixão pelo amigo.
Na hora de costume, foi deixado na mesinha de cabeceira, e felizmente ainda se encontrava lá o seu amigo Ren. Mas estava visivelmente desolado. Assim que o viu chegar, disse em tom de brincadeira, disfarçando a profunda mágoa:
“Você agora é moderno, hein? Vê de todas as distâncias!”
“É verdade” – Concordou Maron: “A lente que me colocaram é multifocal...”
“Eu não presto mais para nada...” – Resmungou, bem baixinho, Ren.
“Mas eu não quero me afastar de você, meu amigo. Nunca!” – Respondeu Maron, seriamente.
“Não depende de sua vontade. É o progresso tecnológico, não podemos impedir! Acho que essa é a última vez que nos vemos...” – Retrucou Ren.
O que ele falou fazia sentido. Ren foi confinado numa gaveta, longe de seu amigo. Nos dias seguintes, somente Maron foi usado, de manhã à noite. Enxergava com perfeição, desde os detalhes até o horizonte distante. No entanto, essa nova vida não lhe trouxe felicidade. Fazia o trabalho como rotina, apenas por obrigação.
Toda noite, ao voltar para o seu canto, Maron esperava em vão encontrar o amigo. Tentava imaginar a dimensão da sua tristeza, trancado numa gaveta, sem poder ler nem acompanhar os desenhos sendo feitos... Se ao menos soubesse em qual gaveta, teria uma chance de vê-lo, de conversar com ele...
Mas a situação real era bem diferente do que Maron imaginava. Ele não foi jogado fora, com certeza. Tampouco trancado numa gaveta. Na verdade, Ren não estava mais naquela casa. Foi dado de presente ao jardineiro, que vinha semanalmente, e sempre se queixava de não enxergar as inscrições no verso dos pacotinhos de sementes. Com o Ren, passou a ler nitidamente.
O jardineiro ficou radiante com o presente, e muito agradecido, tanto que comentou com a mulher: “Um óculos muito bom, eu posso enxergar todas as letrinhas!”
E ela também se entusiasmou: “Que armação bonita! Deve ter custado muito caro! Foi um presentão!”
Ren ficou mais animado com essas palavras, sentiu-se prestigiado e reconfortado em saber que teria uma nova casa. A perda do amigo, isso sim, o entristecia muito, assim como a ausência do computador, a coisa que mais gostava. Teria de se conformar com a telinha do celular do jardineiro. Até que achou interessante a tarefa de ler as inscrições nos pacotinhos de sementes.
Em poucos dias, Ren habituou-se com sua nova vida. Só era desconfortável viajar pendurado na gola da camisa do jardineiro, mas conseguiu decorar os nomes de várias plantas, e se distraía pesquisando os telefones na telinha do celular. Não fosse a saudade do amigo Maron, talvez a vida estivesse correndo bem. Compreendeu nessa hora que, de amigo, a gente não esquece.
“Quem sabe,” – pensava, “um dia ainda o encontre...” – E com esse pensamento, lutava para deixar a saudade de lado.
Semanalmente, o jardineiro o levava à sua antiga casa, pendurado na gola da camisa. Ren sabia que o amigo Maron estava lá, mas o encontro dos dois nunca acontecia.
Um dia, o jardineiro teve que ir na agropecuária, no Centro, para comprar novas sementes, e o levou, como sempre, pendurado na gola.
Ao ser colocado no rosto para ler os textos dos pacotinhos de sementes, ouviu uma voz conhecida: “Bom dia, jardineiro, tudo bem com você?” – Era o dono de sua antiga casa! E bem defronte a seus olhos estava o amigo Maron. Foi um encontro tão inesperado e emocionante, que os dois ficaram se olhando, completamente mudos.
Perguntou o dono da casa: “Gostando do óculos?”
O jardineiro nem sabia como elogiar o presente: “Se estou gostando? É uma maravilha! Agora eu enxergo tudinho! Foi um presentão que o senhor me deu, pode acreditar!”
Durante o diálogo, Ren e Maron não pararam de se olhar, trocando palavras em silêncio – um poder que só as coisas possuem.
Disse Ren: “Olá, Maron! Que bom ver você!”
Maron ficou embaçado de emoção. Mas respondeu: “Meu amigo, pensei que ainda estivesse trancado na gaveta. Vê-lo trabalhando novamente, me deixa muito feliz! E então, está gostando do que vê?”
“Agora, tenho novas tarefas. Gosto de ver plantas, sementes... Mas ainda vejo muita coisa virtual. Não em computador, mas no celular. A tela diminuiu um pouquinho...”
Os dois riram muito, e lágrimas de alegria embaçaram suas lentes.
“É isso, meu amigo. Nossa vida é ajudar os humanos a ver o mundo”, disse Maron. “É uma missão muito nobre, você já pensou nisso?”
Ren demorou-se refletindo, antes de responder: “Você falou uma verdade! Nós vivemos para ajudá-los a viver... Claro, é uma nobre missão! Nunca havia pensado assim...”
Mas o diálogo foi interrompido bruscamente com a despedida dos dois homens. O jardineiro voltou a agradecer o valioso presente, pendurou Ren na gola da camisa e saiu para a rua.
Só houve tempo para Maron gritar: “Ren, meu amigo! Seja feliz! Nós nos encontraremos quando for possível”
Durante todo o caminho, Ren pensou nas palavras de seu amigo. Elas o levaram a descobrir o quanto é mesmo nobre e valioso o ato de ajudar um ser humano a enxergar o mundo. A consciência dessa verdade transformou sua vida. Acabou sua tristeza, finalmente encontrara aquela coisa que faltava, aquele objetivo de viver. Sentiu-se então, pela primeira vez realizado, calmo e seguro, como sempre foi o seu amigo Maron.
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