A VELHA MARROM
Desde que deixou o trabalho, um ano atrás, Marrom permaneceu o tempo todo no quarto. Já velha, seu courvin marrom era então uma pele doente, que soltava pedaços em tudo o que encostasse. Ainda assim mantinha um ar imponente e oferecia muito conforto ao seu dono, um humano que se habituou a recostar o corpo em suas almofadas, à noite, exausto do trabalho. Ela o recebia sempre com muito carinho, curvando-se para aconchegá-lo e ninando o seu sono. Muitas vezes, só nas altas da madrugada é que ele acordava e ia passar o restinho da noite na cama.
Assim era a vida da Marrom, que já exibia mais a cor pálida de seu forro interno, do que o bonito e reluzente marrom de quando era nova.
Vivia de recordações. Lembrava-se de sua juventude, quando sobressaía, suntuosa, entre mil poltronas de escritório, estantes e outros móveis da loja. Ela se achava uma nobre, nascida para fazer parte da mesa de um executivo importante, quem sabe do presidente da empresa. Tinha gabarito para isso, pois fosse lá quem entrasse naquela loja, impossível seria ignorá-la. Sempre arrancava dos compradores olhares de admiração, e outros invejosos, das demais poltronas.
Foi nessa época que seu dono a viu pela primeira vez. Amor à primeira vista. Desde que entrou na loja, não tirou mais os olhos dela. Examinou pacientemente dezenas de poltronas, de todos os modelos, e após sentar-se em cada uma, para ela é que voltava os olhos. Vendo-a de longe, parecia fascinado. Marrom, por sua vez, também se encantou por aquele homem tão simpático. A cada olhar que ele lhe dava, mais crescia a certeza de que o estava conquistando, que aquele seria o seu dono tão sonhado.
Pareceu-lhe um importante executivo. Sem dúvida, um homem rico, a julgar por sua roupa em tons de beje, a camisa chiquérrima, e no entanto despojada, como são as roupas dos ricos que não gostam de ostentar riqueza. Começou então a sonhar como seria o seu escritório, com a mesa imponente de jacarandá, coberta por um espesso vidro de cristal, todo trabalhado com ornados em baixo-relevo.
E não é que, no meio desse sonho, o homem realmente se aproximou para testá-la? Ela o recebeu com todo o conforto que possuía, e ele se aninhou em suas almofadas pela primeira vez, estampando no semblante uma enorme satisfação. Finalmente, entre todas, a escolheu: “Eu quero esta marrom.” – Sacramentou a compra com o vendedor, e foram os dois à sala ao lado, cuidar dos papéis.
Marrom era só felicidade. Iniciou um sonho, no qual era transportada para um prédio suntuoso, todo de vidro fumê... Não, ao contrário, um prédio todo art-nouveaux... Não, melhor ainda, um grande prédio estilo greco-romano, com paredes de pedras e chão de mármore...
No dia seguinte, Marrom foi embalada, colocada num caminhão, e depois de uma viagem que jamais terminava, parou diante de uma casa. Assim que deixou o caminhão, através da embalagem, percebeu tratar-se de uma residência, não o prédio de uma grande empresa, como sonhara. Pouco depois, desembrulhada, viu-se numa bancada comprida, de madeira branca, defronte a um computador. Tudo muito diferente da sala e da mesa imponente que imaginara.
Aquilo nem parecia escritório de empresa, tratava-se de um estúdio pertencente a um artista gráfico. A princípio, Marrom teve uma grande decepção: a realidade era o oposto do seu sonho. Mas os poucos, Marrom foi encontrando componentes também inesperados, mas agradáveis. Reparou no computador de altíssima qualidade, com vários periféricos em volta. Na bancada, lisa mas bem construída, com bonitos potes cheios de materiais de arte, pinceis, lapiseiras, canetas e lápis de cor. Ao correr o olhar pelo recinto, viu paredes repletas de quadros com originais de desenhos.
“Ora,” – pensou. – “Um artista não é menos importante do que um executivo! De repente, pode ser até mais...”
E assim, Marrom foi aceitando a mudança e transformando seu antigo sonho, numa realidade também muito prazerosa. Percebeu logo que aquela inesperada morada, em nada desfez a relação com seu amado dono. Ele continuou a se aconchegar em suas almofadas, onde permanecia horas e horas trabalhando, muitas vezes até a madrugada, só se levantando para para ir ao banheiro ou fazer refeições. Fosse um executivo, não se dedicaria tanto tempo a ela.
Assim se passaram dois anos. Marrom foi envelhecendo mais rapidamente que o esperado, pois apesar de ser muito suntuosa e extremamente confortável, sua pele era de um courvin de má qualidade, quebradiço, e fragmentos de pele começaram a se soltar frequentemente.
A primeira a se tocar com esse fato foi a esposa de seu dono, que o alertou sobre a necessidade de estofá-la. Mas para ele isso era irrelevante. Que se danasse a pele encarquilhada e a soltura do courvin, o importante é que a Marrom era muitíssimo confortável. Ele simplesmente a adorava, assim mesmo, do jeito que ela era.
Muito amada por seu dono, Marrom sentia-se imponente e majestosa no estúdio. Ele, porém, queixava-se constantemente de um problema na coluna, que o deixava com muita tonteira e dores. Marrom soube disso ao ouvir as conversas dele com a esposa. Soube também que o problema era devido à postura. E isso tinha a ver diretamente com ela –, fato que a deixou muito preocupada. Estaria mesmo causando mal à coluna de seu dono? Seria possível que ela, elogiada por ofertar tanto conforto e bem-estar, na verdade estava sendo a causadora desse mal?
O mau pressentimento de Marrom tinha fundamento. Certo dia ela ouviu a esposa de seu dono o aconselhar a comprar outra poltrona.
“Mas eu gosto tanto dela!” – Lamentou. – “Ela é tão confortável...”
Marrom entrou em pânico. A ameaça de ser trocada por outra a apavorou, e só restava rezar para que não fosse descartada de vez. Por outro lado, também não conseguiria ser feliz, sabendo-se causadora de tanto mal. Passou a viver, então, um dilema insuportável.
Até que chegou o dia fatídico. Nesse dia, seu dono não apareceu no estúdio, durante toda a manhã.
“O que teria acontecido?” – Pensava Marrom, cada vez mais angustiada, pressentindo que algo de muito ruim estava por acontecer.
E aconteceu mesmo. No meio da tarde, eis que entram no estúdio o seu dono acompanhado da esposa e... de um grande pacote. Logo que foi desembrulhado, revelou-se o corpo de uma poltrona. Estava chegando para assumir o seu lugar.
A esposa confirmou: “Querido, essa é totalmente anatômica, vai ser o fim de suas dores na coluna.”
Marrom viu ali o seu fim. Seria, talvez, doada por caridade, ou pior ainda: desmontada e jogada no lixo. Começou a chorar muito, mas nem seu dono nem a esposa perceberam. A partir desse dia, seu dono só usava a nova poltrona – a Preta –, para trabalhar.
Marrom foi levada para o quarto, onde permaneceu mais de um ano. Mas antes de ser levada, pôde ver de relance a tal cadeira anatômica, o suficiente para guardar sua figura: “Ela é magricela e toda empinada! E como é feia!” – Pensou – “Como é que uma coisa assim pode ser anatômica?” – E concluiu: “Não sei como o meu dono foi gostar daquilo, só pode ter sido influenciado pela mulher!”
Marrom a essa altura estava já envelhecendo. Isso era mais notório em sua pele, que não parava de soltar pedaços, tornando feio o lindo marrom que tinha quando jovem.
Nos dias seguintes, seu dono adotou de vez a nova rotina: trabalhava o dia inteiro na Preta, a anatômica, e procurava Marrom somente tarde da noite, quando tinha insônia. Nessas horas, buscava nela o repouso que precisava, esticando as pernas, recostado em suas almofadas macias, até recuperar o sono. E Marrom o recebia, apesar de tudo, com o conforto de sempre. Mas também com um certo constrangimento, por sua pele tão descascada. Se bem que, quanto a esse detalhe, ele não estava nem aí.
Essas ocasiões tornaram-se cada vez mais frequentes. Seu dono usava a Preta unicamente para trabalhar no estúdio, mas gostava mesmo era dela, a velha Marrom, que o deixava relaxar com total conforto. Ele realmente a amava.
Tal situação, que parecia irreversível, depois de um ano teve uma reviravolta.
A tal cadeira “anatômica” em nada melhorou o sofrimento de seu dono, e ele acabou se desiludindo. Exames médicos constataram que sua coluna continuava com o mesmo problema de antes. Teve então um insight, e resolveu construir um batente, colocando o computador e o teclado bem mais altos. Assim ele corrigiu sua postura, e por incrível que pareça, simplesmente resolveu o problema. As dores aliviaram de imediato. A causadora do mal era, portanto, a posição do computador, e não a poltrona.
Com isso, a Preta foi aposentada e Marrom chamada de volta ao seu antigo lugar. Marrom fez o caminho de volta, eufórica. Durante o trabalho, revelou que seu assento era mais baixo do que o da Preta, melhorando ainda mais a postura de seu dono, que passou a trabalhar melhor, sem dores, e no conforto que ele tanto gostava.
Criou-se aí um outro problema: seu dono já estava acostumado, à noite, a buscar o sono em seus braços. Sem ela no quarto, sentia muito a sua falta quando tinha insônia. A única solução foi levar Marrom diariamente do estúdio para o quarto, logo que terminasse o expediente de trabalho. Ele a empurrava com carinho, deslizando suas rodas pelos cômodos, às vezes esbarrando nos portais, mas ela sempre chegava ilesa ao quarto. Assim, Marrom pôde servir dia e noite o seu amado dono.
No entanto, uma nova e constante preocupação passou a atormentá-la: o que seria da Preta? Afinal, ela não foi culpada de nada, apenas teve o azar de ser escolhida indevidamente. Ficou provado que o mal não era causado por nenhuma das duas poltronas!
Avessa às injustiças, ela não descansou até conseguir intuir seu dono a manter a Preta no estúdio, abrindo mão, assim, do seu privilégio. Preferiu voltar à rotina de atuar somente à noite, no quarto. A Preta, quando soube de tamanho altruísmo, muito comovida, enviou à Marrom uma linda mensagem de agradecimento, onde propôs uma alternância de funções, com as duas se revezando, no quarto e no estúdio. Mas a Marrom sabia muito bem que a poltrona Preta não teria condições de oferecer o mesmo conforto que ela. Por isso agradeceu a gentileza, mas insistiu em continuar somente no quarto.
A velha Marrom costumava repassar sempre essa história em seu pensamento. Nunca se arrependeu, ao contrário, sentia-se orgulhosa e feliz de ter optado por ficar somente no quarto, a espera das visitas noturnas de seu dono. Sentia a felicidade de quem agiu honestamente.
Como um prêmio ao seu amor e dedicação, recentemente Marrom foi encaminhada a um hospital, para substituir cirurgicamente a pele estragada. Seu dono escolheu um tecido que lhe caía bem, muito bonito e de ótima qualidade, e o estofador fez uma operação perfeita.
Hoje em dia, com a pele nova e reluzente, ela é uma nova Marrom. Continua muito orgulhosa e mais que nunca majestosa, cumprindo com perfeição a nobre tarefa de dar relaxamento e conforto a seu dono, nas noites de insônia.
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