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quinta-feira, 14 de junho de 2018

• HISTÓRIAS DAS COISAS • 29 • Serra Azul



CAFÉ DA MANHÃ

História 19
Serra Azul

(Continuação de O fim da era dos recordes)


A colherzinha de café interrompeu o descanso do facão Rebite Prata: “Seu Prata, aí fora tem um facão querendo falar com o senhor.” – E antes de ouvir a resposta, foi logo fornecendo os detalhes: “Ele é meio estranho... É muito franzino... Parece mais uma faca, mas se apresentou como sendo um facão! Ele é serrilhado e tem o cabo azul, como o da faquinha Azul, mas é bem menor do que ela! Sinceramente, seu Prata, eu nunca vi um facão assim... Mas ele disse que conhece o senhor, posso deixar entrar?” 
Imediatamente Facão Prata se lembrou que foi procurado por uma figura exatamente assim, na época em que esteve confinado na gaveta da churrasqueira. Tinha o tamanho de uma faquinha, mas se achava muito maior. Disse ter sido criado em meio às facas, como se fosse uma delas, mas sempre se considerou diferente. “Eu sou um facão serrilhado, é assim que me sinto.” Contou que onde morava eram todos muito tradicionais, não admitiam mudanças de gênero, e por isso era mal-visto na comunidade.
“Você é gay?” – Perguntou Prata, com naturalidade.
“Não gosto desses rótulos”, respondeu, “apenas sei que sou um facão e não uma faca, como todos pensam.”  
Facão Prata se recorda que ele almejava uma vaga para atuar no Torneio de Tirinhas. Apesar da aparência frágil, garantiu que seu tamanho não seria empecilho: estava certo de sua competência. Chegou a implorar, usando uma reverência exagerada: “Oh, grande mestre, consiga para mim uma vaga na sua equipe.” – E concluiu humildemente: “Eu lhe imploro!”
Prata lembrou-se nitidamente que naquele momento ficou sem saber o que responder. Não tinha como prometer nada, mas também não queria bater-lhe a porta. Se lhe desse um não, poderia estar cometendo uma injustiça. Quem sabe –, pensou –, estivesse ali um grande talento? Resolveu então ser bem franco: explicou que estava na condição de exilado, por isso nada poderia decidir, mas recomendou que procurasse a faquinha Azul, em seu nome, na gaveta dos talheres da cozinha. 
Dias mais tarde o facão Rebite Prata foi chamado de volta à atividade, em dupla com o Dourado. Após sua volta aos Torneios, muitas águas rolaram. Aconteceram fatos importantes e graves, inclusive duas mortes trágicas: a da querida faca Fininha, e logo em seguida a do seu grande amigo Dourado. Esse período foi tão tumultuado que o fez esquecer totalmente do facãozinho serrilhado de cabo azul a lhe implorar ajuda. 
Prata jamais poderia esperar que um dia ele aparecesse novamente. Até porque lhe havia recomendado que procurasse a faquinha Azul, o que ele nunca fez. Mas o fato é que ali estava a figura, defronte à sua casa, querendo lhe falar. Como no passado, Prata não atinava o que fazer, mas também não queria lhe bater a porta, cortar sua esperança. 
“Deixe o facãozinho entrar” – respondeu para a colherzinha.
Pouco depois deu-se de cara novamente com o delicado facãozinho serrilhado. Seu cabo azul reluziu de alegria ao vê-lo: “Olá, mestre Rebite Prata, como vai o senhor?” 
A partir daí, os dois conversaram muito. O facãozinho tornou a contar a sua história, o descrédito de sua família e da comunidade onde vivia, e reafirmou sua vontade obsecada de fazer parte da equipe do Torneio de Tirinhas
Prata foi obrigado a admitir que, além de perseverante, ele era também muito simpático. Acabou deixando-se cativar, crendo mesmo tratar-se de um talento em potencial. Prontificou-se a testá-lo, porém deixando claro que não falava em nome da empresa; a iniciativa seria em caráter pessoal, particular. Sugeriu que adotasse o nome artístico Serra Azul, e acertou a realização do primeiro teste no dia seguinte, numa arena vazia. O facãozinho ficou radiante. Em seguida voltou para a gaveta, onde o Prata lhe ofereceu um lugar para ficar, durante o período de testes.
No dia seguinte, saiu-se maravilhosamente bem no teste de corte do pão, por conta do seu serrilhado e também por mostrar-se afiadíssimo. Nota dez! No entanto, no corte do queijo foi uma decepção. A fragilidade de seu corpo se fez notória: vacilou, envergou a lâmina e arrancou pedaços irregulares, fragmentando o queijo, sem força suficiente para cortá-lo de cima a baixo. Tentou novamente, e outra vez se deu mal. 
Voltou então chorando para a gaveta, com uma tristeza sem fim, apesar de seu mestre Prata fazer de tudo para consolá-lo: “Calma, Serra Azul, não se desespere, você tem talento, você vai pegar o jeito...” – Mas nada adiantou.
Faquinha Azul, é claro, já sabia a respeito. O Prata lhe contara sobre os testes que pretendia fazer com o facãozinho, e ela não só concordou, como torcia para dar certo. Depois das perdas que tiveram, estavam os dois sozinhos no comando dos Torneios, e seria ótimo ter mais um companheiro na equipe. 
Mas ao assistir ao teste do Serra Azul, ela torceu o nariz: “Hum... Sei não... Está me parecendo que esse cara é muito raquítico para ter firmeza no queijo.” 
A sorte do Serra Azul foi que no dia seguinte, durante a apresentação no Torneio de Tirinhas, a própria faquinha Azul também vacilou. Fez quase a mesma coisa: entortou a lâmina, devido à resistência do queijo, arrancando um pedaço sem chegar ao final da fatia. Teve de usar toda a toda a sua técnica para acabar conseguindo, a duras penas, cortar uma segunda fatia mais ou menos certa. Mas a dificuldade foi enorme. Concluiu então que aquele queijo estava totalmente fora do padrão exigido. Significava que o teste do Serra Azul não poderia ser considerado válido. 
Essa notícia deixou Serra Azul novamente otimista e confiante. E como havia se saído muito bem no corte do pão, Rebite Prata resolveu fazer com ele um novo teste. Decidiu encurtar caminho e testá-lo, dessa vez para valer: na arena do Torneio, com público.
A imprensa anunciou a novidade com uma frase de suspense: “Um desconhecido chega amanhã ao Torneio de Tirinhas. Quem será ele?”  – A manchete despertou tanta curiosidade, que no dia seguinte o público lotou o estádio.
Chegou o momento da apresentação. O queijo agora era macio, dentro do padrão oficial. Mesmo assim, muito nervoso, Serra Azul iniciou vacilando novamente. Sua lâmina começou a entortar, mas aos poucos conseguiu alinhá-la e cortou a fatia até o fim, embora meio desnivelada. A segunda fatia saiu melhor, apesar de ainda irregular. Na última, pouco ou nada melhorou. Mas o importante é que conseguiu cobrir com elas toda a superfície do pão. Fez isso com bastante presteza, e ganhou aplausos. Em seguida, o Pote de Orégano cumpriu a sua função rotineira, e então iniciou-se a parte mais difícil, a etapa mais apreciada pelo público, onde o protagonista tem oportunidade de exibir toda a sua técnica: o corte das tirinhas. 
Serra Azul, a partir daí, deu um banho de eficiência. Era a primeira vez que um facão serrilhado atuava nessa função, e revelou-se perfeito. Quase não fragmentava as beiradas do pão e seu serrilhado mostrou-se muito eficaz no corte. Foi bastante aplaudido pelo público.
Apesar do número de tirinhas não ser, atualmente, o fator determinante do sucesso, ainda há no público muitos aficcionados dos antigos recordes. E esses o aplaudiram bastante pelo resultado conseguido, de 21 tirinhas. Na segunda parte do Torneio, na arena de consumo, as tirinhas que Serra Azul cortou ganharam a nota “Ótima!” Não é a melhor nota, mas ainda assim, por se tratar de um novato, provocou muita admiração e aplausos.
Foi um grande começo para o Serra Azul, que de tanta alegria chegou às lágrimas. Foi aprovado pelo público e muito abraçado por seu mestre e pela faquinha Azul. 
   Mas na saída, a Azul comentou bem baixinho com o Prata: ”Sei não... Um protagonista tem que ser completo, e ele é muito frágil para o corte de queijo... Sei não...”

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