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segunda-feira, 19 de março de 2018

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 27 • Tulipinha



Tulipinha

Na manhã em que chegou na casa, depressa procurou fazer amizade com os outros copos que habitavam a mesma prateleira. Sempre muito comunicativa, ela foi logo se apresentando: “Eu sou uma tulipa”, disse sorrindo. 
“Nós também somos,” respondeu a que estava ao seu lado, e acrescentou: “Todas nós temos um nome e um sobrenome: Tulipa Um, Tulipa Dois, Três, e assim por diante. Eu sou a Tulipa Cinco. O seu nome, querida, se aceitar vir morar conosco, deverá ser Tulipa Doze; tudo bem?”
Só então percebeu que todas na prateleira eram iguaizinhas a ela. Assim que compreendeu a situação, respondeu aceitando o amável convite: “Tudo bem, gostei do nome, agora sou a Tulipa Doze!” Em seguida, a líder do grupo se manifestou: “Seja bem-vinda, filha, sou a Tulipa Um, a mais idosa de todas, e por isso me chamam de Mãe Um.” Em seguida as outras se apresentaram: “Prazer, eu sou a Tulipa Nove”, “Eu sou a Tulipa Sete, muito prazer!” “Sou a Tulipa Três, prazer em conhecê-la!” Eram todas muito simpáticas e amáveis. 
Dali em diante, ela teria na Tulipa Cinco a sua melhor amiga, que resolveu chamá-la carinhosamente de Tulipinha, apelido logo aceito por todo o grupo. As duas ficavam sempre lado a lado, e conversavam muito. Disse a amiga Cinco que aquele grupo era reservado para ocasiões especiais, quando os humanos da casa se reuniam com outros, vindos de fora, para tomarem cerveja, mas que em dias normais eram raramente usadas. E, falando baixinho para as outras não ouvirem, comentou sobre os copos da prateleira de baixo, os mais usados pelos humanos, no dia a dia. Eles transportavam, além de água, somente refrescos, sucos e líquidos de cores e densidades variadas. “Por isso eles têm um certo preconceito com a gente”, completou quase sussurrando.   
Tulipinha, indignada, respondeu bem alto: “E nós, também não nos enchemos de líquido?”  
Tulipa Cinco fez sinal para ela baixar a voz e respondeu: “Ah, querida, você é ainda muito criança. Nós, tulipas, somos feitas para conter cerveja! Essa é a razão do preconceito contra nós!”
“Por que? O que há de errado na cerveja?”
“Amiguinha, você tem muito que aprender. Cerveja é um líquido amarelo,” – explicou com paciência e bem baixinho – “que alguns humanos adoram, porque os deixa alegres, mas outros detestam. Sobretudo os religiosos.”
Na mesma tarde, aconteceu na casa uma daquelas reuniões de humanos, e Tulipinha começou a aprender na prática. Pela primeira vez derramaram nela o tal líquido amarelo que os humanos chamam de cerveja. Assim que se encheu, foi lançada com força contra sua companheira, o que a deixou em pânico, pensando que iriam se quebrar. Ao mesmo tempo, os humanos gritavam alegremente: ”Tim-tim! Saúde!” Felizmente nenhuma se quebrou, mas foi um susto daqueles. 
Mais tarde, já na prateleira, sua amiga Cinco lhe disse que aquele era um hábito dos humanos. Sabe-se lá por que, sempre iniciavam as reuniões daquela maneira, batendo uma tulipa na outra, mas felizmente nunca ninguém se quebrou. 
Tulipinha acabou constatando, na prática, que as reuniões com cerveja eram sempre alegres. Os humanos bebiam o seu líquido amarelo, depois as enchiam e esvaziavam novamente inúmeras vezes. Lá pela terceira ou quarta, começavam a rir e ficar alegres. No final das reuniões, que geralmente terminavam bem tarde, todos se despediam com risos e declarações do tipo “foi muito bom, muito agradável”, e voltavam para suas casas. Então, todas as tulipas eram lavadas com água na pia da cozinha, e a casa voltava ao normal.
Essa rotina se repetiu durante muito tempo, meses ou anos. Durante o dia, os copos da prateleira de baixo atuavam praticamente o tempo todo, cheios água ou líquidos coloridos. As doze tulipas do grupo, lideradas pela Mãe Um permaneciam quietas e tranquilas na prateleira de cima, aguardando a reunião dos cervejeiros, que só acontecia de tempos em tempos.
Foi numa dessas reuniões que Tulipinha aprendeu a entender a linguagem humana. Correu a contar a novidade para a amiga Cinco, que ficou eufórica: 
“Você acha que aprendeu a entender os humanos? Tem certeza? Isso é fantástico! Como aconteceu?”
Tulipinha lembrava-se em detalhes: “Eu estava vazia, e o meu dono me encheu de cerveja gelada, depois me segurou e ficou me olhando demoradamente... Mas fez isso com tanto carinho, que de repente tive um insight e consegui ler seu pensamento. Naquele momento, ele pensava na vibração de alegria e amizade existente ali entre todos, e comparou com lembranças do dia a dia, quando cada um se preocupa apenas com si mesmo, ignorando o outro. Seu pensamento foi exatamente esse, eu entendi claramente!”
“Meu Deus, isso é fabuloso!” – exclamou a Cinco, em seguida chamando as outras, para que todas ouvissem o relato. Tulipinha repetiu o início e continuou:
“Aprendi nessa hora que os seres humanos costumam mostrar-se solidários, compreensivos e alegres só quando se reúnem para beber cerveja. Mas não são assim o tempo todo. Ao contrário de nós, que vivemos dedicadas à nossa missão de servir, colaboramos sempre umas com as outras e somos incapazes de prejudicar nossas companheiras.”
As tulipas ficaram pensativas...
Estabeleceu-se daí em diante uma grande empatia entre Tulipinha e seu dono. Toda vez que ele resolvia beber uma cerveja sozinho, a escolhia. Assim, Tulipinha passou a ler cada vez mais facilmente os pensamentos humanos. E cada coisa nova que observava ia correndo contar às companheiras.
"Aprendi hoje o que mais queria saber: por que alguns deles condenam tanto esse nosso líquido amarelo, a cerveja, que só vejo provocar alegria." 
“Sim?” – interveio, curiosa, a Mãe Um. “E por que o condenam?”
“É que esse líquido libera nos humanos o seu lado reprimido. Tem uns que passam da alegria à agressão, e nem se apercebem disso. Em casos mais graves, chegam até a cometer crimes! Sem falar nas doenças que a cerveja causa ao organismo deles, como a cirrose, que pode matar."
“Nossa!”– exclamou a Mãe Um. 
“Você acha que nós podemos matar os humanos?” – indagou sua amiga, Tulipa Cinco. 
“Se eles beberem somente em reuniões como as nossas, não. Mas tem uns que bebem todo dia! Viram alcoólatras!”
Novamente a Mãe Um se espantou: “Nossa! Ainda bem que nossas reuniões só causam alegria!”
Mas Tulipinha prosseguiu: “Soube que também existe a condenação moralista e religiosa. As religiões condenam qualquer bebida alcoólica, inclusive a cerveja, e muitos humanos seguem rigidamente suas religiões.”
“Religiões? O que é isso?” – perguntou a Tulipa Sete.
“Também não sei muito bem. Mas elas têm mandamentos que os humanos devem cumprir. De certa forma, nós também temos a nossa religião, só que ela tem um mandamento só: o de levar líquido aos humanos. Quanto mais boa-vontade tivermos ao cumprir esse mandamento, melhor seremos. Não pensamos em levar vantagem ou em tomar a vez da outra; ao contrário, vivemos colaborando entre nós.” 
Mãe Um perguntou: “Os humanos não são assim?”
“Não são não, infelizmente. Meu dono, em seu pensamento, me mostrou como eles vivem. São muito egoístas, escravos de seus desejos, pisam uns nos outros para conseguir o que chamam de riqueza e lutam o tempo todo para dominar os semelhantes...” 
“Que besteirada!”– comentou uma das tulipas.
“E o pior é que sabem que estão errados! Mas nunca assumem o erro, põem sempre a culpa nos outros. Agarram-se em religiões, tornam-se moralistas... Muitos culpam a nós e à cerveja, como se fossemos a causa do caos em que vivem.“ 
Nessa altura, a Mãe Um sorriu com carinho: “Você, minha filha, foi enviada por Deus para nos ensinar sobre o grande mistério dos humanos. Que Deus a proteja.”
“A senhora e todas as outras é que me ensinaram muito! Me acolheram como irmãs, por isso sou tão feliz aqui. Me ensinaram o que é solidariedade e companheirismo. Vocês não sabem ser agressivas nem mesmo com os copos de água, que têm preconceito contra nós.” 
Mãe Um então alertou: “Eles não têm culpa, pois absorveram essa aversão à bebida alcoólica dos pensamentos dos humanos que os usam.” E concluiu: “Mas eles também são de vidro. No fundo, são iguais a nós.”

 Tulipinha enfim terminou sua narrativa: “Hoje meu dono ficou muito tempo pensando, ao meu lado, na varanda da casa. Ele me encheu de cerveja e disse que se sentia muito só. Disse que naquele momento eu era sua única companheira. Fiquei com pena dele, sim... Mas confesso que por outro lado me senti muito feliz...”

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