GRANDES EVENTOS
•História 14
Trapaças do destino
(Continuação
de A vida é breve
– publicado em setembro de 2017)
Depois da morte da faquinha Fininha, tudo ficou diferente. No
evento Café da Manhã, o Torneio de Tirinhas não tem mais a mesma
empolgação do público, e o Amassamento de
Bananas é o que sustenta, comercialmente, os outros eventos. Foi-se o tempo
em que a casa lotava para ver os facões Prata e o Dourado, Fininha e Azul em
memoráveis apresentações, batendo recordes em cima de recordes, empolgados e
alegres.
O público reduziu a tal ponto, que passaram a comparecer ao
estádio só os aficionados, principalmente os mais velhos, e os espetáculos a
cada dia contavam com menos empenho dos facões e da faquinha Azul, sempre
melancólicos, agindo sem vontade, sem motivação alguma. Na verdade era a
Fininha, companheira que tanto se harmonizou com o grupo nesses últimos tempos
de sua curta vida, que os mantinha unidos e animados.
O diretor de eventos via seu dinheiro se esvair e não atinava o
que fazer. Nem ao menos poderia contar com as brilhantes soluções da faquinha
Azul, em quem tanto confiava. Ao contrário, mais de uma vez a flagrou deprimida
e reclamando dos outros, fato que nunca vira acontecer. E devido à sua grande
experiência, facilmente constatou nessas reclamações, os primeiros sinais de
desunião. “É muito provável” – pensou – “que se as coisas continuarem assim,
haja uma desagregação do grupo”.
O diretor não estava errado. Na manhã seguinte o Rebite Dourado,
embora desaminado, como os outros, apresentou-se para o corte de tirinhas. Ao
sair, ouviu o comentário da Azul: “Está tomando a minha vez!”
Dourado repondeu amigavelmente: “Desculpe, eu devo ter-me
confundido; vá você, então.”
Mas ela irritou-se: “Você quer de novo tomar o meu lugar, como tem
feito de outras vezes!”
“Como pode dizer isso, minha amiga? Você me conhece e...”
Totalmente transtornada, Azul cortou a frase: “Não me chame mais
de amiga! Você agora só pensa em si próprio, quer tomar o lugar até do Prata!”
Rebite Dourado calou-se, amargurado, e voltou ao seu lugar. De
repente, levantou-se muito agressivo: “Você está invertendo as coisas! Você é
que toma sempre o meu lugar e também do Prata! Você é uma egoísta!
Prata interveio prontamente com um grito, interrompendo o conflito:
“Parem com essa discussão idiota! Como podem pensar essas coisas? Perderam a
razão, enlouqueceram?”
Os dois se calaram. Prata iniciou um sermão: “Eu ouvi muito bem o
que você disse, Azul; você é mesmo capaz de pensar isso do nosso amigo Dourado?
Depois de todos esses anos? Depois de tudo o que vivemos juntos? Será que nossa
amizade era uma casca, não resiste ao desejo egoísta de afirmação pessoal?”
Azul retrucou, visivelmente nervosa: ”Ninguém aqui é mais amigo de
ninguém! Tudo está uma merda!”– e, em prantos, jogou-se ao chão da gaveta.
Fez-se um silêncio mortal. Prata sentia-se também deprimido, não somente
com o que acabara de ocorrer. Fazia tempo que não achava mais prazer em se
apresentar, tinha dificuldade em dialogar com os outros, mas não podia supor
que esse fosse um sentimento comum ao grupo. Somente agora percebia isso. E
imediatamente sentiu que estava em suas mãos tomar uma providência. Era hora de
mostrar sua autoridade; reuniu todas as suas forças e com voz alta e firme começou
a colocar as coisas no lugar:
“Dourado, vá para a arena, é a sua vez! Esperamos que cumpra a sua
missão! Azul, você se enganou, vai ter de aguardar até chegar a sua hora!”
“Não... acho que não posso...” – disse Dourado, baixinho. “Não vou
conseguir...”
Sua voz exprimia um profundo desânimo, enquanto a faquinha Azul
nem se mexia, chorando em seu canto.
Prata, no entanto, foi irredutível: “Vá, é a sua vez, é sua
obrigação! Vá e faça seu trabalho da melhor maneira que puder!”
Dourado relutou um pouco, mas acabou, embora a passos lentos,
dirigindo-se para a arena. De repente, parou e voltou-se para o amigo Prata e
para a faquinha Azul, que chorava ainda. Olhou demoradamente os dois, e começou
a dizer coisas estranhas:
“Nós somos apenas objetos! Somos uma lâmina de aço com um cabo! A
única diferença é que nós temos cabos de madeira e somos maiores, e você, Azul,
tem cabo de plástico e é menor do que nós! Essas são nossas únicas diferenças,
nada mais... Nosso tamanho e a cor do nosso cabo! Só isso!”
Faquinha Azul parou de chorar. Ela e o Prata se entreolharam e
ficaram atentos, sem nada entender. Nunca tinham ouvido alguém delirando assim,
fantasiando tanto a realidade. O que Dourado acabara de dizer era mesmo muito
estranho, mas ele prosseguiu em seu delírio:
“Nós não temos vida! Não pensamos, não temos alma, não temos
sentimentos. Fomos feitos apenas para cortar, nada mais que isso... Nós três
somos apenas uns objetos inanimados, umas coisas de pouco ou nenhum valor, essa
é a verdade!”
“Coitado!” – exclamou Azul – a essa altura esquecida totalmente
da discussão que tiveram. “Temos que fazer alguma coisa, ele saiu da
realidade!”
“Ele está mentalmente perturbado, precisa repousar. Vamos levá-lo
daqui.” – disse Rebite Prata, segurando o amigo pelo cabo. Azul levantou-se
para ajudar. Só então pôde refletir melhor:
“Me desculpe, Prata, eu estou muito nervosa. Acho que fui injusta
com ele...”
“Todos nós estamos abalados com essa situação. Desde que a Fininha
nos deixou, parece que perdemos a confiança uns nos outros...” – observou
Prata.
Azul recomeçou a chorar: “Sinto muita falta da minha prima
Fininha...”
“Todos nós sentimos, minha amiga...” – Prata a abraçou,
continuando a falar: “Pelo menos agora estamos podendo tocar nesse assunto. É o
primeiro passo para nos entendermos. Mas antes, temos que tirar o Dourado
daqui. Ajude-me a colocá-lo naquele pano macio... quando acordar ele vai sair
desse transe.”
Infelizmente, porém, aquele era mesmo um dia de desgraça. Quando
os dois tentaram levantar o Dourado, ele teve um infarto fulminante,
partindo-se, separando a lâmina do cabo. Foi o seu fim.
“Não!” – gritaram Prata e Azul ao mesmo tempo, desesperados. Azul,
em prantos, lançou-se sobre o corpo do Dourado, repetindo: “Minha culpa! Foi minha
culpa!”
A voz do Rebite Prata saiu trêmula, embargada pelas lágrimas: “Meu
amigo! Não faça isso comigo! Volte, não nos deixe!”
Mas nada poderia reanimá-lo. Rebite Dourado jazia sobre o macio
pano que forrava a gaveta. Era, quem sabe, o fim do Torneio de Tirinhas...
Nesse momento o Diretor chegou apressado. Apesar de seu temperamento frio estava atônito. Com a mão direita sobre a testa, gritava: “Não acredito no que vejo! Diga que estou enganado! Diga que isso não está acontecendo... que é tudo fantasia!” Ao lado, o Rebite Prata abraçava a faquinha Azul, ambos emocionalmente arrasados.
Nesse momento o Diretor chegou apressado. Apesar de seu temperamento frio estava atônito. Com a mão direita sobre a testa, gritava: “Não acredito no que vejo! Diga que estou enganado! Diga que isso não está acontecendo... que é tudo fantasia!” Ao lado, o Rebite Prata abraçava a faquinha Azul, ambos emocionalmente arrasados.
Duas mortes trágicas em pouco mais de um mês. Trapaças do destino,
que mudarão radicalmente o rumo dos torneios, tanto o tradicional, o de Tirinhas, quanto o Torneio Uno. Ninguém é capaz de prever o
que irá acontecer...
sendino.claudio@gmail.com
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