A PRETA E A CINZA
Preta sempre teve consciência de sua beleza, de ser forte e
resistente. Por isso não se surpreendeu ao ser preferida entre tantas outras na
loja, e guardada, com orgulho, num belo armário de sapatos.
Tinha por seu dono um grande afeto, quase o idolatrava, e sentia-se
muito orgulhosa por ser a única sandália no armário. No esplendor de sua
juventude, nunca se achava cansada, entregando-se de corpo e alma à missão de
caminhar por onde seu dono quisesse ir. Só repousava tarde da noite, enquanto
ele dormia, ou, muito raramente, nas ocasiões em que ele vestia aquelas calças
compridas que ela odiava, e calçando sapatos. Mas seu dono quase sempre trajava
bermudas, e Preta sentia-se uma princesa a enfeitar e proteger seus pés. Uma
grande missão, que estava certa de executar com muita competência.
Dedicava-se ao trabalho, sempre disposta a enfrentar todo tipo de
chão, desde o limpo assoalho da casa, os ladrilhos, a grama do jardim, até as
incógnitas calçadas das ruas, pisando em cimento, asfalto e pedras, terra e
lama, até mesmo em detritos, passando por mil dificuldades. Nessas ocasiões,
sempre que chegava em casa era lavada no tanque, e depois passava horas
encostada na parede, ao sol, até secar.
Depois de a grama ser cortada, suas incursões pelo quintal
terminavam com restos de mato grudados na sola, e a operação da lavagem no
tanque era ainda mais demorada. Não raramente seu dono a esquecia no sol o dia
inteiro e só à noite se lembrava de buscá-la. Verdadeira penitência para ela. Isso
a deixava triste, mas nunca a ponto de diminuir o amor que lhe dedicava.
E assim o tempo ia passando.
Até que um dia, aconteceu um fato imprevisível e chocante, que mudaria
sua vida. Bem ao seu lado, no armário, foi colocada uma outra sandália. Toda
cinza, com fios pretos e, em relevo, um nome de grife reluzente. Aquela marca
que ela cansava de ver na televisão estava ali, de repente, diante dela.
“Quem é você?”, perguntou, surpresa e indignada.
“Sou a nova sandália”, respondeu a outra, com desdém. “Eu não sou
como você, sou de grife. Eu é que pergunto o que você ainda faz aqui! Acho que
você já era!”
Preta quase desmaiou. Durante a sua vida, o amor que dedicava a
seu dono sempre foi correspondido, foi sempre prestigiada com o melhor lugar no
armário de sapatos. Sabia que era muito eficiente e também charmosa. Os elogios
que faziam ao seu dono: “Você fica muito bem com essa sandália preta!” a
deixavam vaidosa.
Ver-se de repente abandonada, trocada por outra, não podia
suportar. Por isso nem conseguiu responder. Calada, permaneceu no seu canto e
chorou muito a noite toda.
No dia seguinte, pela manhã, foi despertada pelo calor dos pés de
seu dono. Radiante por ser escolhida – ela e não a outra –, caminhou, feliz,
pela grama do jardim, em direção à mangueira de regar plantas. Já estava
acostumada com essa tarefa, sabia que no final, encharcada, seria lavada no
tanque e deixada ao sol, para secar. O problema é que dessa vez, ela permaneceu
o resto do dia ali e nada do seu dono chegar para buscá-la. Que assim fosse,
pensou, o importante é que não foi jogada no lixo, como chegou a temer.
Ao anoitecer, ouviu passos se aproximando, e a cena que viveu foi
humilhante. Nos pés do seu dono estava a Cinza, ostentando sua grife. Parou em
frente e a olhou de cima a baixo, com desprezo. Em seguida, o dono a deixou no
armário e seguiu com a Cinza para o passeio noturno.
Preta entendeu o recado. O dono escolhera a Cinza para as noites
de lazer. A ela caberia, de agora em diante, somente os servicinhos sujos de
molhar o jardim e outras tarefas caseiras... Pela primeira vez, Preta sentiu-se
velha, e pensou que em breve seria jogada no lixo. Foi uma noite de pesadelos.
Viu-se transportada no caminhão do lixo... e esmagada, junto com porcarias de
todo tipo... “Ah, meu Deus, prefiro ser queimada!”
Lá pela madrugada, acordou com a porta do armário sendo aberta, e
a Cinza, esplendorosa, foi colocada ao seu lado.
“Não se preocupe, querida”, disse, naquele costumeiro tom de
desdém – “Você vai ser aproveitada, não vai para o lixo, não. Eu fiz questão de
ser usada só para sair, não quero me desgastar à toa... Os trabalhinhos
caseiros continuam com você, querida.”
Preta sentiu um certo alívio, porém misturado com muita
indignação, ao ver seu dono se curvar assim às vontades de “uma novata, metida
a chique”. Sabia que ele não era de seguir modismos, e que alguma coisa
estranha acontecera...
O que aconteceu foi explicado pelo tênis Branco, na noite
seguinte. Os dois se conheciam, mas viam-se muito pouco e nunca haviam
conversado. Era bem raro o dono calçar tênis, eles geralmente saíam da toca só
no inverno. Mas, nessa tarde, o dono resolveu usar o tênis Branco e, na volta,
o deixou bem ao lado da Preta.
Branco quis puxar assunto: “O que achou de sua nova companheira?”,
perguntou, sem saber que tocara o dedo na ferida. Mas Preta compreendeu que não
houve maldade, e respondeu com uma naturalidade forçada: “Ela é muito
chique...” ao que Branco emendou: “É
mesmo, e foi presente de aniversário!”
Preta estremeceu. Lembrou-se que seu dono fizera aniversário na
véspera do aparecimento da Cinza. “Então, não foi escolha dele!” – concluiu.
Essa revelação explicava o fato de a Cinza ser de grife, mas não
justificava a preferência do seu dono por ela. Contudo, contribuiu bastante para
que Preta se conformasse em caminhar somente pela casa e pelo jardim, ignorando
os olhares de superioridade da Cinza. Não tinha outro jeito, essa seria sua
vida dali em diante.
Até que, numa tarde, tudo mudou bruscamente. O sol foi ficando
encoberto por nuvens negras, que depressa se aproximaram. Ignorando a ameaça da
natureza, o dono manteve sua caminhada noturna com a Cinza, e seguiram seu
caminho habitual. Cerca de quarenta minutos após saírem, caíram os primeiros
pingos. Estrondos e relâmpagos dominaram o céu, e rapidamente o aguaceiro
desabou como uma imensa cachoeira.
Do seu canto, no armário, Preta ouvia os trovões e o barulho da
chuva forte no telhado e no jardim, que já ameaçava de se transformar numa
piscina rasa.
A tempestade, muito forte, durou cerca de duas horas, depois foi
abrandando, até que, lá por volta de uma e meia da madrugada, restava só uma
chuvinha fina com um pouco de vento. Durante esse tempo, Preta não conseguiu
pegar no sono, preocupada com seu dono e, por incrível que pareça, também com a
Cinza. Diante da grave situação, ela esqueceu completamente o esnobismo da
outra.
Eram duas e meia da manhã, quando ouviu o barulho da chave abrindo
a porta. Chegaram, finalmente, em passos lentos. Preta enxergou, através da
brecha da porta, seu dono entrar no banheiro, com as roupas encharcadas,
descalço, carregando a sandália. Passou lá algum tempo. Depois, enrolado numa
toalha, entrou no quarto trazendo na mão a sandália Cinza. Colocou-a ao seu
lado e saiu.
Cinza estava irreconhecível. Mesmo tendo sido lavada no banheiro e
enxugada com cuidado, estava impregnada de manchas escuras, e uma de suas tiras
ameaçava soltar-se. Virou-se e falou timidamente, como jamais havia falado:
“Oh, Preta... Você não sabe o que eu passei... Foi Deus que me ajudou, eu quase
morri...” Sua voz era trêmula e cheia de medo.
“Fale,” disse Preta, “conte o que aconteceu, você vai se sentir
melhor se contar.”
Pela primeira vez Cinza a tocou com carinho, agradecendo, e
continuou: “A rua se alagou, eu me vi no meio de um lamaçal que me puxava... me
puxava... e acabou me afastando do nosso dono. Eu me separei em duas. Metade de
mim ficou no meio de um monte de latas e de plásticos, e eu fui arrastada pela
lama até perto de um bueiro de rua. Se caísse, morreria. Fiquei a mercê da
correnteza, que me desviou para o canto da calçada, e ali me acomodei. Quando a
chuva passou e a água baixou, pude ver como estava a rua: tudo era lama,
misturada com lixo, com garrafas e latas, com ratos mortos, com tudo...” As
palavras foram embargadas por lágrimas. Cinza chorou muito, enquanto Preta a
acariciava, com um carinho que jamais pensou que existisse. As duas se
abraçaram, demoradamente.
Quando Cinza se refez e conseguiu falar, parecia outra, que
acabara de nascer. “Nosso dono apareceu, carregando na mão a minha outra parte,
e só então vi que estava salva. Tive muita sorte! Senti que nasci de novo!”
Fez uma pausa e depois olhou a Preta bem nos olhos: “Nessa hora,
os valores mudaram para mim. Vi como a nossa vida é fugaz. O quanto é sem valor
esse nome gravado em mim, o quanto é banal a marca da televisão, como isso tudo
é uma bobagem! Então eu me lembrei de você, Preta... Me lembrei o quanto fui
injusta com você esse tempo todo... Se você puder me perdoar... eu queria muito
ser sua amiga...” A emoção explodiu novamente em lágrimas.
“Nunca é tarde para enxergar! Se você se arrependeu... você está
perdoada, sim... e agora somos amigas!”, disse Preta, também com muitas
lágrimas.
Felizmente os danos causados não chegaram a afetar o corpo da
Cinza, que depois de várias lavagens voltou a ficar em forma. E talvez
percebendo a energia de amor que passou a envolver o armário dos sapatos, o
dono passou a tratar igualmente as duas sandálias, ora usando uma, ora outra,
para todas as tarefas e passeios.
Assim termina esta história, em plena paz.
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