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sábado, 6 de janeiro de 2018

2. HISTÓRIAS DAS COISAS • A Preta e a Cinza (reprise)




A PRETA E A CINZA

Preta sempre teve consciência de sua beleza, de ser forte e resistente. Por isso não se surpreendeu ao ser preferida entre tantas outras na loja, e guardada, com orgulho, num belo armário de sapatos.
Tinha por seu dono um grande afeto, quase o idolatrava, e sentia-se muito orgulhosa por ser a única sandália no armário. No esplendor de sua juventude, nunca se achava cansada, entregando-se de corpo e alma à missão de caminhar por onde seu dono quisesse ir. Só repousava tarde da noite, enquanto ele dormia, ou, muito raramente, nas ocasiões em que ele vestia aquelas calças compridas que ela odiava, e calçando sapatos. Mas seu dono quase sempre trajava bermudas, e Preta sentia-se uma princesa a enfeitar e proteger seus pés. Uma grande missão, que estava certa de executar com muita competência.
Dedicava-se ao trabalho, sempre disposta a enfrentar todo tipo de chão, desde o limpo assoalho da casa, os ladrilhos, a grama do jardim, até as incógnitas calçadas das ruas, pisando em cimento, asfalto e pedras, terra e lama, até mesmo em detritos, passando por mil dificuldades. Nessas ocasiões, sempre que chegava em casa era lavada no tanque, e depois passava horas encostada na parede, ao sol, até secar.
Depois de a grama ser cortada, suas incursões pelo quintal terminavam com restos de mato grudados na sola, e a operação da lavagem no tanque era ainda mais demorada. Não raramente seu dono a esquecia no sol o dia inteiro e só à noite se lembrava de buscá-la. Verdadeira penitência para ela. Isso a deixava triste, mas nunca a ponto de diminuir o amor que lhe dedicava.
E assim o tempo ia passando.
Até que um dia, aconteceu um fato imprevisível e chocante, que mudaria sua vida. Bem ao seu lado, no armário, foi colocada uma outra sandália. Toda cinza, com fios pretos e, em relevo, um nome de grife reluzente. Aquela marca que ela cansava de ver na televisão estava ali, de repente, diante dela.
“Quem é você?”, perguntou, surpresa e indignada.
“Sou a nova sandália”, respondeu a outra, com desdém. “Eu não sou como você, sou de grife. Eu é que pergunto o que você ainda faz aqui! Acho que você já era!”
Preta quase desmaiou. Durante a sua vida, o amor que dedicava a seu dono sempre foi correspondido, foi sempre prestigiada com o melhor lugar no armário de sapatos. Sabia que era muito eficiente e também charmosa. Os elogios que faziam ao seu dono: “Você fica muito bem com essa sandália preta!” a deixavam vaidosa.
Ver-se de repente abandonada, trocada por outra, não podia suportar. Por isso nem conseguiu responder. Calada, permaneceu no seu canto e chorou muito a noite toda.
No dia seguinte, pela manhã, foi despertada pelo calor dos pés de seu dono. Radiante por ser escolhida – ela e não a outra –, caminhou, feliz, pela grama do jardim, em direção à mangueira de regar plantas. Já estava acostumada com essa tarefa, sabia que no final, encharcada, seria lavada no tanque e deixada ao sol, para secar. O problema é que dessa vez, ela permaneceu o resto do dia ali e nada do seu dono chegar para buscá-la. Que assim fosse, pensou, o importante é que não foi jogada no lixo, como chegou a temer.
Ao anoitecer, ouviu passos se aproximando, e a cena que viveu foi humilhante. Nos pés do seu dono estava a Cinza, ostentando sua grife. Parou em frente e a olhou de cima a baixo, com desprezo. Em seguida, o dono a deixou no armário e seguiu com a Cinza para o passeio noturno.
Preta entendeu o recado. O dono escolhera a Cinza para as noites de lazer. A ela caberia, de agora em diante, somente os servicinhos sujos de molhar o jardim e outras tarefas caseiras... Pela primeira vez, Preta sentiu-se velha, e pensou que em breve seria jogada no lixo. Foi uma noite de pesadelos. Viu-se transportada no caminhão do lixo... e esmagada, junto com porcarias de todo tipo... “Ah, meu Deus, prefiro ser queimada!”
Lá pela madrugada, acordou com a porta do armário sendo aberta, e a Cinza, esplendorosa, foi colocada ao seu lado.
“Não se preocupe, querida”, disse, naquele costumeiro tom de desdém – “Você vai ser aproveitada, não vai para o lixo, não. Eu fiz questão de ser usada só para sair, não quero me desgastar à toa... Os trabalhinhos caseiros continuam com você, querida.”
Preta sentiu um certo alívio, porém misturado com muita indignação, ao ver seu dono se curvar assim às vontades de “uma novata, metida a chique”. Sabia que ele não era de seguir modismos, e que alguma coisa estranha acontecera...
O que aconteceu foi explicado pelo tênis Branco, na noite seguinte. Os dois se conheciam, mas viam-se muito pouco e nunca haviam conversado. Era bem raro o dono calçar tênis, eles geralmente saíam da toca só no inverno. Mas, nessa tarde, o dono resolveu usar o tênis Branco e, na volta, o deixou bem ao lado da Preta.
Branco quis puxar assunto: “O que achou de sua nova companheira?”, perguntou, sem saber que tocara o dedo na ferida. Mas Preta compreendeu que não houve maldade, e respondeu com uma naturalidade forçada: “Ela é muito chique...”  ao que Branco emendou: “É mesmo, e foi presente de aniversário!”
Preta estremeceu. Lembrou-se que seu dono fizera aniversário na véspera do aparecimento da Cinza. “Então, não foi escolha dele!” – concluiu.
Essa revelação explicava o fato de a Cinza ser de grife, mas não justificava a preferência do seu dono por ela. Contudo, contribuiu bastante para que Preta se conformasse em caminhar somente pela casa e pelo jardim, ignorando os olhares de superioridade da Cinza. Não tinha outro jeito, essa seria sua vida dali em diante.
Até que, numa tarde, tudo mudou bruscamente. O sol foi ficando encoberto por nuvens negras, que depressa se aproximaram. Ignorando a ameaça da natureza, o dono manteve sua caminhada noturna com a Cinza, e seguiram seu caminho habitual. Cerca de quarenta minutos após saírem, caíram os primeiros pingos. Estrondos e relâmpagos dominaram o céu, e rapidamente o aguaceiro desabou como uma imensa cachoeira.
Do seu canto, no armário, Preta ouvia os trovões e o barulho da chuva forte no telhado e no jardim, que já ameaçava de se transformar numa piscina rasa.
A tempestade, muito forte, durou cerca de duas horas, depois foi abrandando, até que, lá por volta de uma e meia da madrugada, restava só uma chuvinha fina com um pouco de vento. Durante esse tempo, Preta não conseguiu pegar no sono, preocupada com seu dono e, por incrível que pareça, também com a Cinza. Diante da grave situação, ela esqueceu completamente o esnobismo da outra.
Eram duas e meia da manhã, quando ouviu o barulho da chave abrindo a porta. Chegaram, finalmente, em passos lentos. Preta enxergou, através da brecha da porta, seu dono entrar no banheiro, com as roupas encharcadas, descalço, carregando a sandália. Passou lá algum tempo. Depois, enrolado numa toalha, entrou no quarto trazendo na mão a sandália Cinza. Colocou-a ao seu lado e saiu.
Cinza estava irreconhecível. Mesmo tendo sido lavada no banheiro e enxugada com cuidado, estava impregnada de manchas escuras, e uma de suas tiras ameaçava soltar-se. Virou-se e falou timidamente, como jamais havia falado: “Oh, Preta... Você não sabe o que eu passei... Foi Deus que me ajudou, eu quase morri...” Sua voz era trêmula e cheia de medo.
“Fale,” disse Preta, “conte o que aconteceu, você vai se sentir melhor se contar.”
Pela primeira vez Cinza a tocou com carinho, agradecendo, e continuou: “A rua se alagou, eu me vi no meio de um lamaçal que me puxava... me puxava... e acabou me afastando do nosso dono. Eu me separei em duas. Metade de mim ficou no meio de um monte de latas e de plásticos, e eu fui arrastada pela lama até perto de um bueiro de rua. Se caísse, morreria. Fiquei a mercê da correnteza, que me desviou para o canto da calçada, e ali me acomodei. Quando a chuva passou e a água baixou, pude ver como estava a rua: tudo era lama, misturada com lixo, com garrafas e latas, com ratos mortos, com tudo...” As palavras foram embargadas por lágrimas. Cinza chorou muito, enquanto Preta a acariciava, com um carinho que jamais pensou que existisse. As duas se abraçaram, demoradamente.
Quando Cinza se refez e conseguiu falar, parecia outra, que acabara de nascer. “Nosso dono apareceu, carregando na mão a minha outra parte, e só então vi que estava salva. Tive muita sorte! Senti que nasci de novo!”
Fez uma pausa e depois olhou a Preta bem nos olhos: “Nessa hora, os valores mudaram para mim. Vi como a nossa vida é fugaz. O quanto é sem valor esse nome gravado em mim, o quanto é banal a marca da televisão, como isso tudo é uma bobagem! Então eu me lembrei de você, Preta... Me lembrei o quanto fui injusta com você esse tempo todo... Se você puder me perdoar... eu queria muito ser sua amiga...” A emoção explodiu novamente em lágrimas.
“Nunca é tarde para enxergar! Se você se arrependeu... você está perdoada, sim... e agora somos amigas!”, disse Preta, também com muitas lágrimas.
Felizmente os danos causados não chegaram a afetar o corpo da Cinza, que depois de várias lavagens voltou a ficar em forma. E talvez percebendo a energia de amor que passou a envolver o armário dos sapatos, o dono passou a tratar igualmente as duas sandálias, ora usando uma, ora outra, para todas as tarefas e passeios. 
Assim termina esta história, em plena paz.

Sendino.claudio@gmail.com

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