HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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• A SAGA DOS FACÕES
Capítulo IV
Altos e baixos
(Continuação de A morte do Pote de Orégano – março de 2016)
No grande evento Café da Manhã, após uma tensa reunião na
Administração, firmou-se contrato para a reabertura do Torneio de Tirinhas
Tradicional, interrompido desde a trágica morte do Pote de Orégano. Será
protagonizado, nessa nova fase, pelos dois velhos ídolos do público: os facões
Rebite Prata e o Rebite Dourado.
Em paralelo, continuarão os espetáculos do Torneio das Tirinhas
Uno, que vêm progressivamente cativando o público. O Uno possui todos os
ingredientes do sucesso: a técnica de corte é bem mais simples, e os queijos –
branco e amarelo –, dão um especial colorido ao espetáculo. Além disso, os
recentes queijos brancos, menos consistentes, derretem e se espalham pela
bandeja, causando um verdadeiro frisson
no público. A faca Fininha, estrela do evento, contribui para a alegria geral,
com sua movimentação inusitada durante o preparo, errando e consertando,
invertendo de repente as posições, ou gritando, nervosa, quando um pedaço de queijo
se solta. Às vezes, depois de tudo pronto, ela resolve trocar as posições do
queijo branco com o amarelo, provocando uma hilariante confusão. Em síntese, o
Torneio Uno tem menos qualidade e mais atrativos visuais, razão pela qual vem
conquistando os jovens e o povão.
Mas o Torneio de Tirinhas Tradicional está voltando à cena, depois
de um bom tempo inativo. A volta da dupla famosa, Prata e Dourado, foi muito
divulgada pela mídia. As TVs exibiram filmes antigos do facões em atuações
marcantes, e de suas entrevistas no exílio, tentando reativar no público a
antiga paixão, que parecia ter-se esvaído.
No espetáculo de reestreia, tanto o Rebite Prata quanto o Dourado
conseguiram superar o compreensivo nervosismo inicial, e se apresentaram muito
bem. Cada um cortou metade das tirinhas, marcando assim a abertura da
temporada, mas nos próximos espetáculos eles iriam se revezar. Ambos foram bem
aplaudidos, por um bom público, mas que ainda assim ficou abaixo dos
espetáculos Tirinhas Uno. O grande sucesso previsto não foi alcançado.
A razão é que os facões Prata e Dourado, tantos anos juntos,
tinham quase o mesmo estilo. Ora um, ora outro se destacava, mas faltava aquela
empolgação que o público encontrou na Fininha, nos Torneios Uno. Por isso, no
decorrer da temporada, o público foi reduzindo, e o espetáculo acabou sendo
frequentado somente por pessoas mais velhas, saudosistas do sucesso apoteótico
de outrora, e por artistas e intelectuais, de gosto apurado, capazes de
apreciar o talento dos facões, nas sutis manobras de corte. O povão e a maioria
dos jovens, continuou preferindo o outro torneio. Já se cogitava, inclusive, de
transferir o local do espetáculo, do estádio para uma casa menor.
Mas tudo na vida tem seus altos e baixos.
Durante uma apresentação, ainda com pouco público, o Facão Prata
obteve o recorde dessa fase, com 21 tirinhas (o recorde mundial era dele mesmo,
no tempo de seu apogeu, com 24 tirinhas). Mas o Dourado, logo em seguida,
igualou esse recorde de 21 tirinhas, e no dia seguinte o superou, com 22.
Apenas dois dias depois, bateu seu próprio recorde, com 23 tirinhas! Muito
perto do recorde mundial de todos os tempos!
A série de recordes foi um gancho para a imprensa dar destaque ao
torneio, e o público começou a encher o estádio. Toda essa fase, que durou
pouco mais de um mês, deu novo alento aos facões e também aos dirigentes, que
criaram uma expectativa positiva de arrecadação, com aumento constante de
público, inclusive dos jovens, sempre atrás de novas emoções. No Torneio Uno,
Fininha começou a ver sua supremacia ameaçada.
A mídia, interessada sobretudo na audiência, convidou a dupla
Prata e Dourado para uma entrevista num programa de grande público. A repórter
provocou: “Prata, você acha que está
preparado para superar o Dourado?” “Não penso em superar ninguém!”, ele
respondeu. “Faço sempre o melhor que
posso, e os recordes vão acontecendo naturalmente.” Mas
a repórter continuou instigando: “Sobre o
espetáculo Uno, o que você acha da Fininha?” E
Prata saiu-se bem: “Acho a Fininha encantadora,
mas ela tem o seu jeito e nós temos o nosso.” A
repórter: “Você pretende chegar ao seu
próprio recorde mundial, de 24 tirinhas?” “Quem sabe...”, respondeu Prata. A entrevista, transmitida em rede nacional,
despertou grande interesse do público.
No dia seguinte, o estádio lotou, como nos velhos tempos. Telões
foram armados do lado de fora, o que não acontecia há anos. Naquela manhã, tudo
indicava uma volta ao sucesso passado, e os patrocinadores brindaram,
radiantes.
O espetáculo, com o público lotando o estádio, transcorreu como
nem os mais otimistas conseguiriam prever. Prata foi brilhante, iniciando a
primeira tirinha com um corte estreito e colocando as próximas três em seguida,
na mesma coluna. Um lance muito difícil, por isso aplaudido de pé. Seguiu
economizando espaço em cada tirinha que cortava, e quando terminou o público
fez um silêncio absoluto, à espera da contagem final. Todos sabiam que seria
alta, que chegaria pelo menos perto do recorde.
De repente os auto falantes soaram: “Igualado o recorde mundial! Vinte e quatro tirinhas!”
O próprio Rebite Prata não acreditou. Olhou para trás e viu o
amigo Dourado, polegar erguido, comemorando. Só então caiu na realidade:
igualar seu grande recorde, depois de todos esses anos! E isso era real! Estava mesmo
acontecendo!
A ovação do público o fez novamente acreditar no futuro, pelo
menos naquele momento de glória. Os aplausos intermináveis estacionaram o tempo
em sua mente. Foi só com o abraço apertado e sincero do amigo Dourado, que ele despertou
para a realidade. Mas os aplausos continuavam, mesmo depois do abraço.
Sentiu-se então vaidoso, consagrado.
Parecia que, enfim, o Torneio das Tirinhas havia recuperado o
apogeu. Previa-se a partir daí que os espetáculos, alternados com o Torneio das
Uno, manteriam as duas casas cheias, para alegria dos patrocinadores e
diretores.
Mas a competição entre os dois torneios prometia ser também muito
maior. E de consequências imprevisíveis...
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