História 2
Rodinho Mignon
No grande espetáculo do Café da Manhã, além dos conhecidos Torneio
das Tirinhas e Torneio das Tirinhas Uno, existem vários outros, uns mais,
outros menos frequentados pelo público. O segundo mais conhecido é o
Amassamento de Bananas, onde os garfos e colheres, antes renegados, são os
protagonistas. Em seguida, na ordem de preferência, está a Lavagem da Louça,
que na verdade é o mais antigo, com cerca de vinte anos.
Há também eventos secundários, menos importantes, como a Retirada
da Bandeja do Forno, que tem como protagonistas a Pequena Toalha e o Pegador de
Alumínio. Apesar de pouco frequentado é muito emocionante, devido ao grande
perigo de se queimar, exigindo muita coragem e técnica apurada.
Merece também ser citada, ainda que não seja um evento público, a
viagem aérea dos talheres que irão participar dos espetáculos. Colheres, facas
e garfos saem juntos da gaveta e embarcam numa confortável aeronave, que os
leva até as arenas de suas funções. Essa viagem é sempre prazerosa e útil, pois
incentiva a amizade entre os Talheres Nobres e os Renegados, antigos inimigos,
que passam a viagem inteira em conversas alegres e brincadeiras.
Outro evento secundário, mas igualmente interessante é a Limpeza
da Pia. Esse evento encerra o espetáculo do Café da Manhã, e justamente dele é
que vamos falar agora.
A Limpeza da Pia começa logo após terminada a Lavagem da Louça,
quando a esponja é espremida no mármore da pia. O espetáculo tem como único
protagonista o Rodo – ou Rodinho, como muitos chamam. A tarefa consiste em
puxar para dentro da pia a água e pequenas migalhas de pão que sobraram dos
espetáculos anteriores.
O nome Rodo, no masculino, é apenas por tradição. Atualmente,
Rodinho é uma jovem, muito talentosa, que conseguiu seu lugar numa situação de
emergência. Ela veio substituir às pressas o Rodo II, que foi expulso pela
esposa do diretor de eventos, por mero capricho, sem motivo algum justificável.
O caso da expulsão do Rodo II foi muito estranho e
reconhecidamente injusto. Ele havia sido contratado em substituição ao Rodo
Pioneiro – o primeiro da clã –, que se aposentara por idade, falecendo logo em
seguida. O Rodo Pioneiro foi o fundador do espetáculo Limpeza da Pia, tendo
desenvolvido sozinho toda a técnica de atuação e também elaborado o seu
regulamento.
Fazia parte de sua técnica dar seguidas “pancadinhas” no mármore,
para se livrar da espuma, mantendo a borracha limpa, e por isso era odiado por
um membro da diretoria que se opunha publicamente a esse procedimento. O tal
diretor não achava necessário as “pancadinhas”, considerando esse gesto um
exibicionismo vulgar. Mas a forte personalidade do Pioneiro jamais permitiu que
se curvasse, e a técnica das “pancadinhas” existe até hoje.
Dizem que esse mesmo diretor, revoltado, obrigou o Pioneiro a se
aposentar, mas a realidade é que ele tinha a idade avançada e estava bastante
enfermo. Tanto que pouco depois faleceu repentinamente, de um enfarto
fulminante. Dizem as más línguas, que para a alegria do diretor...
Contratou-se então um novo Rodo, batizado de Rodo II. Nas suas
primeiras apresentações ele decepcionou. Devido ao seu tamanho avantajado era
muito desajeitado, esbarrando sempre no porta-talheres, quase derrubando os
copos, o que sempre causava mal-estar no público presente. Além disso, sua
borracha era muito extensa e não vedava bem, por isso deixava falhas ao puxar a
água. Enfim, tudo nele funcionava mal. A sua saída, desejada pelo público, era
iminente para os dirigentes. O único que ainda o admirava era aquele diretor
que odiava seu antecessor, pois Rodo II não costumava usar a técnica das “pancadinhas”
do Pioneiro.
Mas aconteceu com o Rodo II uma mudança radical e inesperada. Numa
das apresentações, sua borracha desprendeu-se do corpo. Era para ter encerrado
ali sua carreira, mas, para surpresa geral, ele não parou. Mesmo sem borracha,
cumpriu a missão até o fim do espetáculo, e, por incrível que pareça, com ótimo
desempenho, puxando a água com perfeição. Pela primeira vez Rodo II arrancou
aplausos do público.
Então, era a borracha que o atrapalhava!
Daí em diante, ganhou senso de direção, não esbarrou mais nos
copos, puxando a água sem deixar rastros, como nunca fizera antes, quando tinha
borracha. O público, obviamente começou a se entusiasmar, e o evento se tornou
cada vez mais frequentado. Todos queriam ver o “Sem Borracha”, como acabou
sendo apelidado. Os dirigentes, felizes com a arrecadação crescente, o
promoverem a Permanente, com poderes equivalentes ao falecido Rodo Pioneiro.
Porém, a esposa do diretor de eventos costumava sempre tomar suas
decisões, atendendo somente a seus caprichos. Numa manhã, acordou pior do que
sempre e decretou que nenhum rodo poderia atuar mais sem a borracha. Sabia
muito bem que estava decretando o fim do Rodo II, mas assim mesmo “fincou pé”
na sua decisão, por mais que todos lhe mostrassem o trabalho eficiente do Sem Borracha.
Ignorando a todos, esbravejou: “Não quero
aqui nada pela metade! Ou você coloca a borracha ou não pode mais atuar!!!”
Foi dessa maneira estúpida que ela o demitiu e contratou no mesmo dia a Rodinho,
uma principiante.
O diretor, com sérios problemas para resolver nos eventos
principais, achou melhor não brigar com a esposa por causa de um evento
secundário. Se ela queria que as coisas fossem assim... que fossem! Mas, pelo
menos, em vez de jogar o Rodo II no lixo, como sua esposa determinou, ele
facilitou, às escondidas, que ele se exilasse no armário do estúdio. E o Sem
Borracha permanece lá até hoje.
A estreia da Rodinho, no dia seguinte, foi melhor do que o
esperado. Rodinho era uma figurinha delicada, visivelmente vaidosa, exatamente
o oposto de seu antecessor. O público logo a batizou de “Rodinho Mignon”.
Vestia uma túnica branca bordada com um singelo galinho contornado de preto e
crista vermelha. Uma gracinha, diziam todos. Quando começou a atuar,
percebeu-se que sua borracha puxava a água com perfeição, por isso terminou
muito aplaudida. Seu futuro era promissor.
Nas primeiras apresentações, Mignon parecia mais uma criança
brincando com água, do que uma profissional atuando para o público. Mas aos
poucos, dia após dia recebendo aplausos e elogios, acabou adquirindo segurança
nos gestos, e substituiu a antiga técnica das “pancadinhas” por uma espécie de
”balanço”, onde todo o seu corpo batia de leve no mármore, em dois tempos, soando
de forma agradável. E agradou realmente, e muito, tanto à plateia quanto à
diretoria. O gesto criativo e exclusivo do “balanço” tornou-se a sua marca
registrada.
Atualmente, durante os espetáculos, o público aguarda com ansiedade
o momento do “balanço”, e a aplaude muito nessa parte do show.
Consagrada como uma competente profissional, Mignon soube conservar-se
delicada e muito graciosa, durante e depois de cada espetáculo. Tem seu lugar
assegurado entre os profissionais e artistas dos grandes torneios, e ajudou a
transformar o curto espetáculo da Limpeza de Pia num evento mais conhecido e
concorrido.