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terça-feira, 3 de novembro de 2015

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 4 • O outro pincel

HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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• O outro pincel

Era um pincel de barba comum, de cor bege, porém tão clarinho que parecia branco. Mas fazia questão de ser chamado de Marfim. Seus pelos também claros, fartos, formavam quase uma bola sobre o tronco. Há meses que Marfim estava numa prateleira da drogaria, junto com estojos, vidros de loção e um monte de outros produtos. Mas não queria envelhecer ali, sem jamais cumprir sua missão de espalhar espuma em algum rosto. Por isso cultivava a esperança de ser comprado por alguém. Passava o dia inteiro sonhando com esse momento, sabia que estava preparado, lidaria muito bem com a espuma e a água, quando chegasse a hora. “Se é que vai chegar...”, pensava em momentos de depressão, quando duvidava de sua sorte.
Aconteceu repentinamente. Pouco antes do anoitecer, viu-se agarrado pelas mãos da funcionária da farmácia, e logo se sentiu embrulhado. Pelo tipo de papel, percebeu que não iria ser oferecido de presente, como desejava. “Mas que me importa?”, pensou. O que lhe interessava naquele momento é que finalmente seu ideal de morar num banheiro, ao lado de uma lâmina e de uma Bisnaga de Creme, estava se realizando. Curioso e bastante apreensivo, tentava adivinhar como seria o armário. “Luxuoso, confortável... ou velho, de trinco quebrado... Ah, meu Deus, o que eu menos quero na vida é habitar um armário sujo!”
Marfim só conseguiu relaxar quando ouviu o ruído macio do motor do carro, afastando-se da loja. Um ótimo sinal: a casa para onde era levado não devia ser tão ruim...
Em pouco tempo viu-se desembrulhado e colocado numa bela prateleira de vidro. Ao lado, havia um barbeador novinho... e dos bons! “Graças!” – Murmurou baixinho. “A sorte está me sorrindo.”
Marfim começou a conhecer os seus companheiros. Barbeador sorriu discretamente e lhe ofereceu boas-vindas. “Qual o seu nome?”, perguntou amavelmente.
“Eu me chamo Marfim.”
“Que belo nome! É o nome de um nobre!”, elogiou e, em seguida, lhe apresentou a Bisnaga de Creme, já uma senhora, com quem ele iria trabalhar em dupla. Bisnaga não era de muitas falas, apenas lhe fez um aceno amigável.
De repente, Marfim compreendeu a razão daquela reserva: ao fundo, calado e circunspecto, havia um outro pincel, bem magro, cinza escuro e com os pelos negros. Sentiu um calafrio ao se deparar com aquela figura silenciosa, quase macabra. Era mesmo muito esquisito o tal pincel: quase o dobro da sua altura, porém fino e com poucos pelos. “Como poderia, tão magro, espalhar espuma?” – ficou pensando. E qual seria a finalidade de colocarem dois pinceis no mesmo armário? Esta sim, era uma preocupação que ainda ia dar panos para manga...
Barbeador, compreendendo a curiosidade de Marfim, esclareceu, quase sussurrando, que aquele era o antigo pincel e foi posto de lado porque soltava pelos. 
Discretamente e bem baixinho, foi contando toda a história: “Ele era o pincel de estimação do Administrador – o dono da casa –, por ser muito semelhante ao do seu falecido pai. Por isso era tratado como rei, ocupava o lugar que bem quisesse, escolhia o creme de sua preferência, enfim, tinha todas as regalias. Conosco era muito prepotente, praticamente só nos dirigindo a palavra para exigir coisas. Determinava o nosso lugar, controlava nossa maneira de atuar... 
Ele teve sua época de esplendor. Só que um dia, sem nenhuma explicação, começou a soltar pelos. Depois da barba feita, a pele ficava cheia de pelos, e o rosto tinha de ser lavado várias vezes. Isso causava um grande incômodo. O Administrador tolerou até onde pôde, mas em dado momento não foi mais possível. 
Foi um grande transtorno. O Cinza – como o chamamos –, acostumado a ser rei, tornou-se um frangalho. Em pouco mais de um mês, seus pelos se reduziram pela metade. Ficou assim, magro, praticamente imprestável, mas nem pensamos em lhe oferecer ajuda... Também, em nada poderíamos ajudar. ”
Barbeador chegou bem perto de seu ouvido, cobrindo a boca, e lhe disse, ainda mais baixinho: “O Administrador gosta tanto do Cinza, que não se desfez dele. Deixou que ficasse ali no canto, e acho que vai continuar sempre ali. Relutou muito em comprar outro pincel, mas acabou comprando. Por isso é que você está aqui...” 
Não demorou muito e apagou-se a luz. Chegara a noite.
Barbeador lhe falou também da Loção Pós-barba, que habitava o compartimento do outro lado do espelho. “Ela é lindíssima e tem poderes supranormais! Dizem que o perfume da sua loção opera milagres!” E ficou de apresentá-la no dia seguinte, o que acabou não acontecendo.
Aquela noite foi bastante incômoda para Marfim, com a presença permanente e quase macabra do Cinza, ali pertinho, imóvel, calado e com a cara amarrada. Em contrapartida, a felicidade de ter encontrado finalmente um lar era também muito grande.
Na manhã seguinte, antes das oito horas, surgiu no banheiro o Administrador. Marfim já havia sido prevenido de que, logo após o banho de chuveiro, o Administrador costumava se barbear. Por isso, enquanto ouvia o barulho do chuveiro, Marfim começou a se preparar para entrar em ação. Reparou logo que Bisnaga de Creme era de uma boa marca, e seu creme prometia uma espuma abundante. Parecia que tudo ia dar certo.
Chegou finalmente a estreia tão esperada. Marfim rodopiou pela pele, em círculos, transformando em espuma o creme fornecido pela Bisnaga, espalhando-o por todo o rosto. Marfim fez tudo perfeito, até o final, quando foi lavado, sacudido e guardado novamente no seu lugar. O último ato dos trabalhos, logo após, foi protagonizado pela Loção Pós-barba cumprindo a sua parte, de derramar pequenos jatos de líquido perfumado sobre o rosto do Administrador. Devido à crença geral de seus poderes sobrenaturais, Marfim prestou bastante atenção. A Loção tinha sua forma e cor muito bonitas e atraentes. Esperava um dia poder conhecê-la pessoalmente.  
Afinal, o evento foi um grande sucesso. Já no armário, Marfim recebeu cumprimentos efusivos do Barbeador, agora seu amigo, e até conseguiu arrancar elogios da sisuda Bisnaga de Creme, que considerou a atuação de seus pelos decisiva para a abundância da espuma. 
Ouviu ao longe os elogios do Administrador, agradecendo à esposa “a escolha perfeita’ que fizera na farmácia. Marfim ficou sabendo então que foi ela a responsável por sua compra. 
A felicidade só não foi completa, por conta da figura misteriosa do pincel Cinza, como sempre mudo e quieto, no canto da prateleira. 
E assim o tempo foi passando. Suas apresentações costumavam arrancar elogios do Administrador, sempre em comentários com sua esposa. 
Certo dia, finalmente o barbeador cumpriu a promessa e, momentos antes do início das operações, apresentou a bela Loção Pós-barba, que até então Marfim só via de relance. Tímido, não sabia o que dizer. “Você faz jus aos elogios. É mesmo muito cheirosa”, foi o que lhe ocorreu falar. Ela sorriu: “Obrigada. Eu me sinto lisonjeada.” 
Marfim então foi mais objetivo: “É verdade que você faz milagres?”
“Não são bem milagres... Mas costumo conseguir refazer o que se desfez.”, respondeu, enigmaticamente. E esse foi o único diálogo possível, pois Marfim foi logo requisitado pelo Administrador a entrar em ação.
Passaram-se meses nessa mesma rotina.  
Porém, coisas ruins não marcam hora para acontecer. E um incidente ameaçou transformar a vida de Marfim numa tragédia. Ocorreu numa manhã, logo após a ação do barbear. Ao ser lavado, sentiu que vários pelos se soltavam, espalhando-se pela pia. Marfim não acreditava no que via. Terminado o barbear, o Administrador levou a mão ao rosto e colheu vários pelos grudados na sua pele. Imediatamente gritou: “Merda!” e jogou com força Marfim dentro da pia, por sorte não quebrando sua base. Ele rolou até o ralo e ficou por um bom tempo imóvel, semi mergulhado na poça d’água que se formara. Ouviu a porta bater e os passos do Administrador afastando-se. Mas em seguida ele voltou, pegou Marfim e começou a examiná-lo. Puxou alguns fios, que se soltaram. Então o colocou no seu lugar, no armário, e foi embora. 
No interior do armário fez-se um silêncio mortal. Todos presenciaram o incidente e mesmo o barbeador e a Bisnaga de Creme, amigos de Marfim, não encontravam o que dizer para aliviar a tensão. Marfim encolheu-se num canto, deprimido, vendo o seu mundo desabar.
De repente, uma voz grossa e pausada veio do fundo do armário: “Então, aconteceu com você também...” A frase ficou no ar, incompleta, mas pesada. Era a voz do Cinza, soando pela primeira vez em tantos meses. “Eu sei o que você está sentindo... Eu já passei por isso.”
Marfim o olhou mas não teve coragem de dizer nada. Os outros tampouco. 
Pausadamente, o Cinza prosseguiu: “Ele vai lhe dar ainda algumas oportunidades... Vai alimentar esperança... Vai ainda acreditar que tudo foi um sonho...”
Marfim ouvia, imóvel, como se ouvisse uma sentença de morte.
“Mas pouco a pouco, a cada manhã, você verá a realidade... Esses seus lindos pelos loiros irão caindo... caindo....” A voz rouca e pausada do Cinza se tornava cada vez mais ameaçadora. “Você verá a esperança se desfazer... como uma bruma. E os seus lindos pelos loiros vão virar... fiapos.”
“Não!”, gritou Marfim. “Isso não pode acontecer comigo!”
Barbeador o abraçou, tentando consolar sua dor. A Bisnaga de Creme, que quase não falava, também o abraçou com carinho: “Meu filho, seja forte, você vai conseguir sair dessa. Eu vou fazer uma prece à Loção Pós-barba, ela faz milagres!”. Nesse momento, uma gargalhada rouca ecoou pelas paredes de vidro do armário. O Cinza, afinal, se sentia recompensado com a desgraça do seu concorrente.
Assim veio a tarde e a noite escureceu rapidamente. O silêncio absoluto em parte acalmou os ânimos, mas também fez aumentar a tristeza de Marfim. Nem ao menos uma esperança, como previu o Cinza em seu discurso macabro, ele conseguiu sentir. Ao contrário, estava convencido de que sua vida chegara ao fim. 
Amanheceu e, mais cedo do que de costume, o Administrador iniciou os trabalhos. Procedeu da maneira habitual, como se nada tivesse acontecido na véspera. Marfim, totalmente inseguro, teve os movimentos bloqueados no espalhar a espuma. Isso piorou a situação, pois levou o Administrador a pressionar mais seus pelos contra o rosto.
Marfim foi novamente examinado, teve mais pelos arrancados pelos dedos do Administrador, e foi jogado novamente na pia. Em seguida o Administrador pegou a Loção Pós-barba, mas como seu rosto ainda tinha pelos do pincel para retirar, colocou a Loção também na pia, bem ao lado de Marfim.
Por alguns instantes, Marfim e a Loção Pós-barba ficaram lado a lado. Aproveitando aquele momento único, ela lhe disse: “Molha-te antes! A água vai te salvar!” 
Foi tudo o que conseguiu dizer, antes de ser apanhada pela mão do Administrador, para iniciar sua função. Mas o suficiente para Marfim guardar suas palavras e passar o resto do dia tentando adivinhar o significado. 
Daí em diante, Marfim não se importou com mais nada. Nem com as zombarias do Cinza: “Seus lindos pelos loiros... vão virar fiapos!” , nem com suas gargalhadas de vingança. Nem tampouco com as palavras de consolo de seus amigos, que na verdade mais o entristeciam. Marfim só pensava naquelas palavras. Acreditou que nelas estava a chave da sua salvação! 
Assim, permaneceu toda a tarde e adormeceu antes do escurecer.
Acordou com os ruídos habituais do início das funções. O som do chuveiro, depois a preparação para o barbear, e finalmente a retirada do Barbeador, da Bisnaga de Creme e dele próprio. 
Um momento antes de ser retirado, olhou para baixo e viu que a pia estava cheia de água. Num reflexo, lembrou-se das palavras da Loção: “A água vai te salvar!” , e, sem pensar em mais nada, rodopiou e jogou-se na pia.
Quando o Administrador o pegou, estava encharcado. Talvez por isso, espremeu nele a porção de creme, e não no rosto, como costumava fazer.
Essa mudança foi vital.
Acreditando tratar-se de um milagre, Marfim esmerou-se no espalhar o creme, formando ainda mais espuma do que de costume, e não sentiu em momento algum os pelos se desprenderem de seu corpo.
Terminado o barbear, o Administrador esvaziou a pia e não encontrou nenhum pelo. Passou as mãos pelo rosto e nada. Então murmurou para si: “É isso! Ele tem que estar molhado!” 
Dia seguinte, a pia não estava com água, mas o Administrador resolveu testar da mesma maneira: molhou primeiro o pincel e colocou nele o creme. Só depois o levou ao rosto. 
Deu certo!
Repetiu esse procedimento mais duas vezes com resultados positivos e, a partir daí, a vida voltou ao normal. Exibições contínuas e perfeitas fizeram retornar a confiança do Administrador na competência de Marfim. Foi também muito elogiado pelos amigos, consolidando ainda mais a amizade. 
Marfim apressou-se em encontrar a Loção Pós-barba, e muito se emocionou ao lhe agradecer ter salvo a sua vida. Loção o lembrou do que dissera: “Só consigo refazer o que se desfez”, e portanto a sua competência já existia antes, ela apenas a trouxe de volta. 
Disse também que tudo foi resultado de uma forte energia negativa existente no armário, e não precisou citar o nome, para que Marfim entendesse claramente de onde vinha aquele mal. “O que posso fazer para dissipar essa energia?”, perguntou. “Uma energia negativa só pode ser anulada por uma outra positiva”, respondeu Loção, antes de se despedir e afastar-se.
Marfim voltou para o armário com novo enigma para decifrar.
Durante aquela noite, concentrou-se em achar uma solução. Quando, de repente, teve uma intuição, não pensou duas vezes: chamou seus amigos, Barbeador e Bisnaga de Creme, e os convocou a mentalizar firmemente que o Administrador daria uma nova oportunidade ao Cinza. Tinha tanta convicção de estar fazendo a coisa certa, que conseguiu convencer rapidamente os dois. Passaram o resto da noite em vigília, imaginando o Administrador compreendendo e aceitando a sugestão. Permaneceram assim até que o cansaço os venceu.
Mas só dormiram um pouco, logo amanheceu e tiveram de iniciar as tarefas habituais.
Quando chegou o Administrador, tiveram uma surpresa e tanto: na hora de pegar o pincel, foi diretamente ao Cinza. Resolveu fazer com ele um novo teste. Teria sido a mentalização que surtira efeito?
Mas a grande alegria de Marfim foi quando soube do resultado: o Cinza molhado previamente, não soltou mais pelos e o Administrador resolveu então alternar o uso dos dois pincéis. 
Marfim e seus amigos voltaram felizes, pois tinham certeza de que isso transformaria totalmente o ambiente do armário. Mais uma vez, resultado das palavras sábias da Loção Pós-barba. Eis porque tem fama de realizar milagres.
Na volta, passou por eles o Cinza, que já havia recebido a notícia. Estava com outra cara. Até mesmo um sorriso se conseguia adivinhar em suas feições enrugadas. Ele parou defronte ao Marfim e o olhou por alguns momentos. “Obrigado”, disse com a voz embargada. Marfim lhe ofereceu a mão, mas ele devolveu com um abraço apertado. Esse abraço selou a nova relação que se iniciava, e caminharam abraçados até o armário. Barbeador e Bisnaga de Creme os acompanharam logo atrás, e tinham seus olhos molhados. Lágrimas não faltaram nessa comovente comemoração. Marfim nunca mais esqueceu daquela frase: “Uma energia negativa só pode ser anulada por uma outra positiva”...





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