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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 1 • Os renegados



Esta seção publicará periodicamente histórias com objetos como personagens. 
Antes de decidir publicar, mostrei o primeiro texto ao escritor e poeta Nei Leandro de Castro, que me devolveu com a seguinte opinião:

"Este é o texto mais doido que li nos últimos dezessete anos e três meses."













  Os renegados  

      Existia um faqueiro de qualidade inferior ao que era usado na mesa. Os cabos dos garfos e colheres eram arredondados na ponta e a espessura do metal bem mais fina, e por isso renegados, guardados numa gaveta onde não se mexia, à espera, talvez, de serem doados.
Sonhavam com um final melhor, sonhavam em ser aceitos entre os talheres principais e ter a mesma função que eles. Esse sonho foi em vão durante muito tempo, e o desânimo já começava a se abater entre todas as peças do pequeno faqueiro. Mas, certa vez, chegou a tão sonhada oportunidade.
Foi num sábado, na hora de amassar a banana para o complemento do café da manhã. Os cabos dos garfos principais, toda vez comprimiam o pulso, de modo desagradável. Então ocorreu a ideia de experimentar essa função com os talheres renegados, que tinham a ponta arredondada.
Foi perfeito. Eram muito mais confortáveis para aquela operação. A partir daí, garfos, colheres e facas, que antes estavam praticamente no lixo, foram requisitados para o Amassamento de Banana. Exclusivamente para isso e nada mais. As facas não seriam necessárias, portanto deveriam permanecer como estavam, abandonadas.
Essa mudança radical gerou um drama sem precedentes. Os garfos e colheres se solidarizaram com as facas abandonadas, que chagaram a suplicar pela permissão de acompanhar os outros. Era uma questão de humanidade. Um grupo que nasceu e viveu junto durante tantos anos não podia se separar assim.
Tanto pediram, tanto protestaram que, por compaixão, as facas acabaram sendo incluídas no grupo. Passaram todos a habitar a gaveta dos talheres principais, mas isso causou um problema oposto. Garfos, facas e colheres do primeiro escalão, revoltados com a situação que consideravam humilhante, deram entrevistas na mídia, nas quais francamente se diziam superiores aos recém chegados, e estavam indignados em se misturar com aquela classe inferior.
Gritaram, fizeram passeatas de protesto e, afinal, houve um acordo. Ficou estabelecido que ganhariam oficialmente um título, definindo sua condição de superior. Ganhariam o título de Talheres Nobres e teriam prioridade absoluta para todas as tarefas da mesa, com a única e exclusiva exceção do Amassamento de Bananas. Especificamente para essa função seria permitido o uso das colheres e garfos inferiores.
Firmou-se o acordo numa cerimônia pública, com discursos e assinaturas de ambas as partes.
E o tempo foi passando, mas não sem incidentes. Na prática, os Talheres Nobres tentaram impor a condição de que, no momento da mão escolher a colher e o garfo para o Amassamento de Bananas, quem se apresentasse na frente seria escolhido.
Estranhamente, começou a vigorar essa lei arbitrária, à qual os fiscais cruzaram os braços, fizeram vista grossa. Cada vez que se ia buscar na gaveta o garfo e a colher para o Amassamento de Banana, os Nobres se colocavam na frente dos outros e impunham a sua escolha.
As peças inferiores, reclamando seu direito, disputavam com determinação e até com violência o seu lugar, e, algumas vezes tinham êxito.
O ambiente se tornou muito tenso, não raramente precisando da interferência policial. Com o passar do tempo, no entanto, cansou-se de tanta briga. Aos poucos, os Talheres Nobres foram aceitando a situação, principalmente porque percebiam que os inferiores sabiam “se colocar em seu lugar” e nunca reclamavam outra função que não fosse aquela.
Os garfos e as colheres inferiores, de cabos arredondados e metal fino, acabaram podendo fazer seu trabalho em paz. Hoje em dia, pode-se dizer que os dois grupos se respeitam e mantêm uma relação bastante cordial.
Entre os inferiores, nasceram relações amorosas de alguns garfos por algumas colheres, pois no Amassamento de Bananas, sempre trabalhavam em dupla, o garfo amassando e a colher colocando a farinha de aveia para misturar.
O casal sempre ia junto para a mesa, e voltava também junto no prato, para serem lavados. Muitas vezes faziam essa viagem, da mesa para a pia da cozinha, o tempo inteiro entrelaçados. Era muito romântico.
As facas inferiores também lucraram com tudo isso. Apesar de não participarem do Amassamento de Bananas, passaram a habitar definitivamente a gaveta principal. Conformaram-se em permanecer na reserva, para qualquer eventualidade. A paz reinou finalmente na gaveta dos talheres.