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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 5 • Rviravolta no Torneio




HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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 A SAGA DOS FACÕES
Capítulo II
Reviravolta no Torneio 
(Continuação de Novo recorde mundial – setembro de 2015)


       O grande Torneio de Tirinhas esteve a ponto de acabar. Em pleno apogeu, com o estádio sempre cheio e rendendo milhões, eis que os facões, tanto o Rebite Prata quanto o Dourado, ambos protagonistas principais do evento, foram repentinamente afastados, sem nenhuma explicação, condenados a viver na velha gaveta da churrasqueira, junto com os talheres de churrasco, adquiridos numa loja popular.
Em seu lugar, foi empossada a recente aquisição: uma faca de cabo plástico azul, que habitava justamente a gaveta da churrasqueira, para onde foram levados os facões. Muito menor que eles, sem nenhuma experiência de torneios, ainda assim foi contratada.
O acontecimento chocou a todos, e não faltaram especulações da imprensa. Dizem que tudo foi causado pela esposa do diretor de eventos, que ao ver a faquinha apaixonou-se por ela e a recomendou para o torneio, com o argumento de que sua beleza iria atrair mais público. Pressionou tanto o marido, que ele acabou cedendo ao seu capricho.
O fato é que, uma vez consumada a demissão dos facões, anunciou-se imediatamente a estreia da Faca Azul – como foi batizada –, para o próximo Torneio de Tirinhas.
Na manhã do evento, o movimento nas ruas era grande. O público lotou o estádio, não para ver seu ídolo, como antes fazia, mas sim para vaiar e debochar da estreante, pois todos tinham como certo o vexame que iria acontecer.
A expectativa era enorme, até que se iniciou espetáculo, com a chegada da tábua, do queijo e do tradicional pote de orégano, sempre presente e atuante. Após a cerimônia da separação das duas bandas do pão, a Faca Azul finalmente entrou em cena cortando o queijo e distribuindo as fatias sobre o pão. O público, atento, esperava só um pequeno deslize para começar uma grande vaia... Mas o deslize acabou não acontecendo. A Faca Azul surpreendeu. Saiu-se muito bem nessa primeira etapa. Depois, esperou o Pote de Orégano cumprir a sua tarefa, para iniciar a parte mais difícil: a de cortar as tirinhas.
Atrapalhou-se um pouco no início, mas acabou muito melhor do que o esperado. Não se perdeu em momento algum e terminou com um corte transversal para a esquerda, na última tira – considerado uma ousadia criativa. A contagem registrou 14 tiras, o que para uma estreante era um grande resultado. E sua criatividade no corte transversal foi marcante. Acabou, inclusive, arrancando algumas palmas do público, ainda que a contragosto de todos.
Daí em diante, pouco a pouco afrouxou a pressão contra ela, embora a lembrança dos facões Rebite Prata e Dourado, ídolos da multidão, estivesse ainda viva nas mentes do povo. Muitos choravam por eles, e colocavam mensagens em redes sociais pedindo a sua volta. Todo esse movimento acabou surtindo efeito, pois logo as TVs anunciaram um pronunciamento deles, ao vivo, diretamente de onde estavam – no armário da churrasqueira.
Nesse dia a audiência foi absoluta, mas a transmissão tinha tanta interferência estática, que praticamente só o áudio funcionava, tendo a emissora que exibir uma foto de arquivo dos dois facões. Porém somente Rebite Prata falou, o seu amigo não quis se manifestar.
Mesmo assim a entrevista foi comovente. Prata não mostrou-se magoado e até incentivou a nova protagonista do evento. Com a voz tranquila, disse ter assistido a estreia da Faca Azul pela TV e que via nela muito talento. Ofereceu sua experiência, caso a “faquinha” precisasse de algum conselho. A Azul, em contato direto, chorou ao ouvi-lo e aceitou prontamente a oferta, tratando-o de “grande mestre”. Aproveitou para esclarecer que não foi ideia sua o que aconteceu, que nunca desejou ocupar o lugar deles, deixando claro que a culpa toda foi mesmo da esposa do diretor.
Esse pequeno diálogo, transmitido nacionalmente por todas as TVs, repercutiu muito bem em favor da Faca Azul. Deu-lhe mais confiança, pois realmente era muito talentosa, e ela passou a fazer todas as tarefas cada vez melhor, no Torneio das Tirinhas. Sua habilidade era evidente, e não parava de receber elogios do seu “mestre’, através do telefone instalado especialmente para ela.
Já então o público a aplaudia, mas estava longe de lotar a plateia. Muita gente ainda relutava assisti-la, talvez por solidariedade a seus antigos ídolos, injustamente afastados. Percebendo isso, a direção promoveu, com apoio das TVs, outra transmissão direta, dessa vez com a imagem garantida.
Rebite Prata apareceu nitidamente na tela, mas novamente sozinho. Como era seu jeito, evitou revelar qualquer mágoa sobre os motivos de seu afastamento. Preferiu gastar o seu tempo incentivando a “faquinha” Azul, como a chamava carinhosamente, afirmando sua certeza de que ela saberia superar a dificuldade do seu tamanho com muita técnica, e se tornaria uma grande profissional, pois talento não lhe faltava.
No dia seguinte houve muito mais gente na plateia, mas ainda assim não lotou. A razão, sem dúvida, foi a lembrança saudosa dos facões, bem sabiam os organizadores do evento. Como também sabiam que isso os faria perder dinheiro. E muito.
Ocorreu então a única ideia possível para sanar a situação: chamar de volta, se não os dois facões, pelo menos o Rebite Prata. Essa ideia foi aprovada unanimemente na reunião convocada às pressas. Mas acertaram que tudo deveria ser feito em sigilo, sem cobertura da imprensa, para que a surpresa causasse um grande impacto no público.
Imediatamente contataram os facões e propuseram o retorno do Prata, com a condição de que ele jamais questionaria seu afastamento, pelo menos publicamente. Ao contrário do que esperavam, sua reação não foi de euforia. Pediu um tempo para pensar, alegando que já estava fora há muito tempo, que não sabia se iria ter a mesma disposição nem a mesma destreza. E principalmente, porque teria de se afastar de seu amigo, pois ele desejava viver em completo anonimato.
Os empresários deram o tempo necessário, mas voltaram a contatá-lo e a negociação finalmente chegou a um acordo. Ele voltaria, mas poderia escolher os dias para atuar, sem compromisso de continuidade. E seu companheiro Rebite Dourado ficava lá, mas com todas as regalias possíveis, podendo vir quando desejasse.
  O sigilo foi mantido, mas não totalmente. Vazou para um funcionário da empresa, que correu para contar a novidade à Faca Azul, pouco antes do espetáculo. A notícia a fez sair-se muito bem nesse dia. Cortou as fatias de queijo de modo perfeito e recebeu muitas palmas. Motivada pelo que estava por acontecer, terminou com 17 tirinhas, um antigo recorde mundial, que para ela representava muito. Destacou-se também no transporte e na colocação criativa das tirinhas na bandeja, seguindo um caminho inverso, esbanjando criatividade. Dessa vez, foi aplaudida demoradamente, quase ovacionada. O público finalmente reconhecia seu talento.
Sabedora da volta dos facões, depois de agradecer as palmas, ela fez uma declaração bombástica: “Tenho certeza de que Rebite Prata e Rebite Dourado estarão novamente aqui. Nesse dia eu passarei o bastão para eles, com muita honra!”
Aí então, recebeu uma grande ovação do público. Essa declaração repercutiu em toda a imprensa. Todos comentavam o fato, alguns achando que foi uma pista do que iria acontecer, enquanto outros interpretaram simplesmente como uma demonstração de amor. Todos, enfim, a partir daí a aceitaram definitivamente como uma profissional capaz e competente. Nascia ali uma nova estrela.
A partir desse dia o público aumentava a cada espetáculo, até se equiparar com o do tempo dos facões. Faca Azul descobrira uma nova maneira de atuar, diferente da convencional e adaptada ao seu tamanho. Consagrou-se, finalmente, em grande parte consequência dos conselhos e incentivos que recebeu pelo telefone, sistematicamente, do seu mestre. 
Poucos dias depois, durante sua apresentação, fez-se uma pausa para o autofalante anunciar que Rebite Prata estava de volta, e brevemente se apresentaria ao público. Euforia total. Gritos se confundiram com palmas em todo o estádio. Ninguém prestou mais atenção ao espetáculo, nem mesmo os participantes, e a faquinha, visivelmente comovida, terminou apressadamente sua apresentação. Correu para o camarim e chorou de alegria.
No espetáculo de retorno do Facão Prata, o estádio não comportou a quantidade de público, e uma multidão se formou do lado de fora, para assistir por telões.
Facão Prata estava nervoso como nunca estivera, em grande parte pela falta do apoio de seu amigo Dourado, que ficara na gaveta da churrasqueira. Sentiu-se inseguro, pois havia anos que não se exibia publicamente. E foi com esses pensamentos que entrou em cena, tremendo diante da gritaria e dos aplausos do público. Se pudesse, naquele momento desistiria e voltaria ao aconchego da sua gaveta. Vacilou ao iniciar seu primeiro corte, largo demais, sem a decisão e a presteza que sempre teve, e o pão resistiu, não cortou. Teve de repetir com toda a força que pôde, e por isso deslizou, espalhando resíduos, fazendo uma verdadeira lambança. 
Parecia inevitável o fracasso completo, mas foi aí que seu talento nato falou mais alto. Com a ponta, num gesto rápido e preciso, consertou o erro e arrumou a tirinha. Cortou novamente, agora mais concentrado, e conseguiu um belo corte. Foi aplaudido por esse lance. Seguiram-se as outras tiras, de modo competente, sem erros. Mas também sem o brilho de outrora.
Quando terminou, Facão Prata foi aplaudido demoradamente, mas estava consciente que sua performance foi muito aquém da expectativa. Mesmo assim, a faquinha Azul correu a abraçá-lo, emocionada. Era seu mestre querido e seu ídolo, nada importava a atuação que teve.
Essa demonstração de afeto o reconfortou muito naquele momento. Os dois acabaram se isolando de todos, absortos numa conversa que se prolongou mesmo depois que saíram do estádio. Contaram um ao outro suas façanhas, alegrias e também os dissabores que passaram na vida. A amizade que existia, solidificou-se nesse dia.

O problema agora é como iria ser dali em diante. Certamente muita coisa estava para acontecer...

terça-feira, 3 de novembro de 2015

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 4 • O outro pincel

HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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• O outro pincel

Era um pincel de barba comum, de cor bege, porém tão clarinho que parecia branco. Mas fazia questão de ser chamado de Marfim. Seus pelos também claros, fartos, formavam quase uma bola sobre o tronco. Há meses que Marfim estava numa prateleira da drogaria, junto com estojos, vidros de loção e um monte de outros produtos. Mas não queria envelhecer ali, sem jamais cumprir sua missão de espalhar espuma em algum rosto. Por isso cultivava a esperança de ser comprado por alguém. Passava o dia inteiro sonhando com esse momento, sabia que estava preparado, lidaria muito bem com a espuma e a água, quando chegasse a hora. “Se é que vai chegar...”, pensava em momentos de depressão, quando duvidava de sua sorte.
Aconteceu repentinamente. Pouco antes do anoitecer, viu-se agarrado pelas mãos da funcionária da farmácia, e logo se sentiu embrulhado. Pelo tipo de papel, percebeu que não iria ser oferecido de presente, como desejava. “Mas que me importa?”, pensou. O que lhe interessava naquele momento é que finalmente seu ideal de morar num banheiro, ao lado de uma lâmina e de uma Bisnaga de Creme, estava se realizando. Curioso e bastante apreensivo, tentava adivinhar como seria o armário. “Luxuoso, confortável... ou velho, de trinco quebrado... Ah, meu Deus, o que eu menos quero na vida é habitar um armário sujo!”
Marfim só conseguiu relaxar quando ouviu o ruído macio do motor do carro, afastando-se da loja. Um ótimo sinal: a casa para onde era levado não devia ser tão ruim...
Em pouco tempo viu-se desembrulhado e colocado numa bela prateleira de vidro. Ao lado, havia um barbeador novinho... e dos bons! “Graças!” – Murmurou baixinho. “A sorte está me sorrindo.”
Marfim começou a conhecer os seus companheiros. Barbeador sorriu discretamente e lhe ofereceu boas-vindas. “Qual o seu nome?”, perguntou amavelmente.
“Eu me chamo Marfim.”
“Que belo nome! É o nome de um nobre!”, elogiou e, em seguida, lhe apresentou a Bisnaga de Creme, já uma senhora, com quem ele iria trabalhar em dupla. Bisnaga não era de muitas falas, apenas lhe fez um aceno amigável.
De repente, Marfim compreendeu a razão daquela reserva: ao fundo, calado e circunspecto, havia um outro pincel, bem magro, cinza escuro e com os pelos negros. Sentiu um calafrio ao se deparar com aquela figura silenciosa, quase macabra. Era mesmo muito esquisito o tal pincel: quase o dobro da sua altura, porém fino e com poucos pelos. “Como poderia, tão magro, espalhar espuma?” – ficou pensando. E qual seria a finalidade de colocarem dois pinceis no mesmo armário? Esta sim, era uma preocupação que ainda ia dar panos para manga...
Barbeador, compreendendo a curiosidade de Marfim, esclareceu, quase sussurrando, que aquele era o antigo pincel e foi posto de lado porque soltava pelos. 
Discretamente e bem baixinho, foi contando toda a história: “Ele era o pincel de estimação do Administrador – o dono da casa –, por ser muito semelhante ao do seu falecido pai. Por isso era tratado como rei, ocupava o lugar que bem quisesse, escolhia o creme de sua preferência, enfim, tinha todas as regalias. Conosco era muito prepotente, praticamente só nos dirigindo a palavra para exigir coisas. Determinava o nosso lugar, controlava nossa maneira de atuar... 
Ele teve sua época de esplendor. Só que um dia, sem nenhuma explicação, começou a soltar pelos. Depois da barba feita, a pele ficava cheia de pelos, e o rosto tinha de ser lavado várias vezes. Isso causava um grande incômodo. O Administrador tolerou até onde pôde, mas em dado momento não foi mais possível. 
Foi um grande transtorno. O Cinza – como o chamamos –, acostumado a ser rei, tornou-se um frangalho. Em pouco mais de um mês, seus pelos se reduziram pela metade. Ficou assim, magro, praticamente imprestável, mas nem pensamos em lhe oferecer ajuda... Também, em nada poderíamos ajudar. ”
Barbeador chegou bem perto de seu ouvido, cobrindo a boca, e lhe disse, ainda mais baixinho: “O Administrador gosta tanto do Cinza, que não se desfez dele. Deixou que ficasse ali no canto, e acho que vai continuar sempre ali. Relutou muito em comprar outro pincel, mas acabou comprando. Por isso é que você está aqui...” 
Não demorou muito e apagou-se a luz. Chegara a noite.
Barbeador lhe falou também da Loção Pós-barba, que habitava o compartimento do outro lado do espelho. “Ela é lindíssima e tem poderes supranormais! Dizem que o perfume da sua loção opera milagres!” E ficou de apresentá-la no dia seguinte, o que acabou não acontecendo.
Aquela noite foi bastante incômoda para Marfim, com a presença permanente e quase macabra do Cinza, ali pertinho, imóvel, calado e com a cara amarrada. Em contrapartida, a felicidade de ter encontrado finalmente um lar era também muito grande.
Na manhã seguinte, antes das oito horas, surgiu no banheiro o Administrador. Marfim já havia sido prevenido de que, logo após o banho de chuveiro, o Administrador costumava se barbear. Por isso, enquanto ouvia o barulho do chuveiro, Marfim começou a se preparar para entrar em ação. Reparou logo que Bisnaga de Creme era de uma boa marca, e seu creme prometia uma espuma abundante. Parecia que tudo ia dar certo.
Chegou finalmente a estreia tão esperada. Marfim rodopiou pela pele, em círculos, transformando em espuma o creme fornecido pela Bisnaga, espalhando-o por todo o rosto. Marfim fez tudo perfeito, até o final, quando foi lavado, sacudido e guardado novamente no seu lugar. O último ato dos trabalhos, logo após, foi protagonizado pela Loção Pós-barba cumprindo a sua parte, de derramar pequenos jatos de líquido perfumado sobre o rosto do Administrador. Devido à crença geral de seus poderes sobrenaturais, Marfim prestou bastante atenção. A Loção tinha sua forma e cor muito bonitas e atraentes. Esperava um dia poder conhecê-la pessoalmente.  
Afinal, o evento foi um grande sucesso. Já no armário, Marfim recebeu cumprimentos efusivos do Barbeador, agora seu amigo, e até conseguiu arrancar elogios da sisuda Bisnaga de Creme, que considerou a atuação de seus pelos decisiva para a abundância da espuma. 
Ouviu ao longe os elogios do Administrador, agradecendo à esposa “a escolha perfeita’ que fizera na farmácia. Marfim ficou sabendo então que foi ela a responsável por sua compra. 
A felicidade só não foi completa, por conta da figura misteriosa do pincel Cinza, como sempre mudo e quieto, no canto da prateleira. 
E assim o tempo foi passando. Suas apresentações costumavam arrancar elogios do Administrador, sempre em comentários com sua esposa. 
Certo dia, finalmente o barbeador cumpriu a promessa e, momentos antes do início das operações, apresentou a bela Loção Pós-barba, que até então Marfim só via de relance. Tímido, não sabia o que dizer. “Você faz jus aos elogios. É mesmo muito cheirosa”, foi o que lhe ocorreu falar. Ela sorriu: “Obrigada. Eu me sinto lisonjeada.” 
Marfim então foi mais objetivo: “É verdade que você faz milagres?”
“Não são bem milagres... Mas costumo conseguir refazer o que se desfez.”, respondeu, enigmaticamente. E esse foi o único diálogo possível, pois Marfim foi logo requisitado pelo Administrador a entrar em ação.
Passaram-se meses nessa mesma rotina.  
Porém, coisas ruins não marcam hora para acontecer. E um incidente ameaçou transformar a vida de Marfim numa tragédia. Ocorreu numa manhã, logo após a ação do barbear. Ao ser lavado, sentiu que vários pelos se soltavam, espalhando-se pela pia. Marfim não acreditava no que via. Terminado o barbear, o Administrador levou a mão ao rosto e colheu vários pelos grudados na sua pele. Imediatamente gritou: “Merda!” e jogou com força Marfim dentro da pia, por sorte não quebrando sua base. Ele rolou até o ralo e ficou por um bom tempo imóvel, semi mergulhado na poça d’água que se formara. Ouviu a porta bater e os passos do Administrador afastando-se. Mas em seguida ele voltou, pegou Marfim e começou a examiná-lo. Puxou alguns fios, que se soltaram. Então o colocou no seu lugar, no armário, e foi embora. 
No interior do armário fez-se um silêncio mortal. Todos presenciaram o incidente e mesmo o barbeador e a Bisnaga de Creme, amigos de Marfim, não encontravam o que dizer para aliviar a tensão. Marfim encolheu-se num canto, deprimido, vendo o seu mundo desabar.
De repente, uma voz grossa e pausada veio do fundo do armário: “Então, aconteceu com você também...” A frase ficou no ar, incompleta, mas pesada. Era a voz do Cinza, soando pela primeira vez em tantos meses. “Eu sei o que você está sentindo... Eu já passei por isso.”
Marfim o olhou mas não teve coragem de dizer nada. Os outros tampouco. 
Pausadamente, o Cinza prosseguiu: “Ele vai lhe dar ainda algumas oportunidades... Vai alimentar esperança... Vai ainda acreditar que tudo foi um sonho...”
Marfim ouvia, imóvel, como se ouvisse uma sentença de morte.
“Mas pouco a pouco, a cada manhã, você verá a realidade... Esses seus lindos pelos loiros irão caindo... caindo....” A voz rouca e pausada do Cinza se tornava cada vez mais ameaçadora. “Você verá a esperança se desfazer... como uma bruma. E os seus lindos pelos loiros vão virar... fiapos.”
“Não!”, gritou Marfim. “Isso não pode acontecer comigo!”
Barbeador o abraçou, tentando consolar sua dor. A Bisnaga de Creme, que quase não falava, também o abraçou com carinho: “Meu filho, seja forte, você vai conseguir sair dessa. Eu vou fazer uma prece à Loção Pós-barba, ela faz milagres!”. Nesse momento, uma gargalhada rouca ecoou pelas paredes de vidro do armário. O Cinza, afinal, se sentia recompensado com a desgraça do seu concorrente.
Assim veio a tarde e a noite escureceu rapidamente. O silêncio absoluto em parte acalmou os ânimos, mas também fez aumentar a tristeza de Marfim. Nem ao menos uma esperança, como previu o Cinza em seu discurso macabro, ele conseguiu sentir. Ao contrário, estava convencido de que sua vida chegara ao fim. 
Amanheceu e, mais cedo do que de costume, o Administrador iniciou os trabalhos. Procedeu da maneira habitual, como se nada tivesse acontecido na véspera. Marfim, totalmente inseguro, teve os movimentos bloqueados no espalhar a espuma. Isso piorou a situação, pois levou o Administrador a pressionar mais seus pelos contra o rosto.
Marfim foi novamente examinado, teve mais pelos arrancados pelos dedos do Administrador, e foi jogado novamente na pia. Em seguida o Administrador pegou a Loção Pós-barba, mas como seu rosto ainda tinha pelos do pincel para retirar, colocou a Loção também na pia, bem ao lado de Marfim.
Por alguns instantes, Marfim e a Loção Pós-barba ficaram lado a lado. Aproveitando aquele momento único, ela lhe disse: “Molha-te antes! A água vai te salvar!” 
Foi tudo o que conseguiu dizer, antes de ser apanhada pela mão do Administrador, para iniciar sua função. Mas o suficiente para Marfim guardar suas palavras e passar o resto do dia tentando adivinhar o significado. 
Daí em diante, Marfim não se importou com mais nada. Nem com as zombarias do Cinza: “Seus lindos pelos loiros... vão virar fiapos!” , nem com suas gargalhadas de vingança. Nem tampouco com as palavras de consolo de seus amigos, que na verdade mais o entristeciam. Marfim só pensava naquelas palavras. Acreditou que nelas estava a chave da sua salvação! 
Assim, permaneceu toda a tarde e adormeceu antes do escurecer.
Acordou com os ruídos habituais do início das funções. O som do chuveiro, depois a preparação para o barbear, e finalmente a retirada do Barbeador, da Bisnaga de Creme e dele próprio. 
Um momento antes de ser retirado, olhou para baixo e viu que a pia estava cheia de água. Num reflexo, lembrou-se das palavras da Loção: “A água vai te salvar!” , e, sem pensar em mais nada, rodopiou e jogou-se na pia.
Quando o Administrador o pegou, estava encharcado. Talvez por isso, espremeu nele a porção de creme, e não no rosto, como costumava fazer.
Essa mudança foi vital.
Acreditando tratar-se de um milagre, Marfim esmerou-se no espalhar o creme, formando ainda mais espuma do que de costume, e não sentiu em momento algum os pelos se desprenderem de seu corpo.
Terminado o barbear, o Administrador esvaziou a pia e não encontrou nenhum pelo. Passou as mãos pelo rosto e nada. Então murmurou para si: “É isso! Ele tem que estar molhado!” 
Dia seguinte, a pia não estava com água, mas o Administrador resolveu testar da mesma maneira: molhou primeiro o pincel e colocou nele o creme. Só depois o levou ao rosto. 
Deu certo!
Repetiu esse procedimento mais duas vezes com resultados positivos e, a partir daí, a vida voltou ao normal. Exibições contínuas e perfeitas fizeram retornar a confiança do Administrador na competência de Marfim. Foi também muito elogiado pelos amigos, consolidando ainda mais a amizade. 
Marfim apressou-se em encontrar a Loção Pós-barba, e muito se emocionou ao lhe agradecer ter salvo a sua vida. Loção o lembrou do que dissera: “Só consigo refazer o que se desfez”, e portanto a sua competência já existia antes, ela apenas a trouxe de volta. 
Disse também que tudo foi resultado de uma forte energia negativa existente no armário, e não precisou citar o nome, para que Marfim entendesse claramente de onde vinha aquele mal. “O que posso fazer para dissipar essa energia?”, perguntou. “Uma energia negativa só pode ser anulada por uma outra positiva”, respondeu Loção, antes de se despedir e afastar-se.
Marfim voltou para o armário com novo enigma para decifrar.
Durante aquela noite, concentrou-se em achar uma solução. Quando, de repente, teve uma intuição, não pensou duas vezes: chamou seus amigos, Barbeador e Bisnaga de Creme, e os convocou a mentalizar firmemente que o Administrador daria uma nova oportunidade ao Cinza. Tinha tanta convicção de estar fazendo a coisa certa, que conseguiu convencer rapidamente os dois. Passaram o resto da noite em vigília, imaginando o Administrador compreendendo e aceitando a sugestão. Permaneceram assim até que o cansaço os venceu.
Mas só dormiram um pouco, logo amanheceu e tiveram de iniciar as tarefas habituais.
Quando chegou o Administrador, tiveram uma surpresa e tanto: na hora de pegar o pincel, foi diretamente ao Cinza. Resolveu fazer com ele um novo teste. Teria sido a mentalização que surtira efeito?
Mas a grande alegria de Marfim foi quando soube do resultado: o Cinza molhado previamente, não soltou mais pelos e o Administrador resolveu então alternar o uso dos dois pincéis. 
Marfim e seus amigos voltaram felizes, pois tinham certeza de que isso transformaria totalmente o ambiente do armário. Mais uma vez, resultado das palavras sábias da Loção Pós-barba. Eis porque tem fama de realizar milagres.
Na volta, passou por eles o Cinza, que já havia recebido a notícia. Estava com outra cara. Até mesmo um sorriso se conseguia adivinhar em suas feições enrugadas. Ele parou defronte ao Marfim e o olhou por alguns momentos. “Obrigado”, disse com a voz embargada. Marfim lhe ofereceu a mão, mas ele devolveu com um abraço apertado. Esse abraço selou a nova relação que se iniciava, e caminharam abraçados até o armário. Barbeador e Bisnaga de Creme os acompanharam logo atrás, e tinham seus olhos molhados. Lágrimas não faltaram nessa comovente comemoração. Marfim nunca mais esqueceu daquela frase: “Uma energia negativa só pode ser anulada por uma outra positiva”...





quinta-feira, 1 de outubro de 2015

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 3 • Justiça ao comprimido branco



HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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Justiça ao comprimido branco

Há um grande evento diário, logo após a cerimônia do Café da Manhã, que vem conquistando grande público. Trata-se do Espetáculo dos Comprimidos.
São cinco comprimidos para engolir. Um copo com água de coco é colocado sobre a toalha, para que a tarefa seja mais prazerosa. Os comprimidos têm cores diferentes, sendo dois vermelhos, um verde (esses chamados de “coloridos”), e dois brancos – um deles minúsculo e o outro mais do que o dobro do seu tamanho. Os coloridos, principalmente os dois vermelhos, sempre correm e se apresentam na frente. Pulam do vidro, já afoitos para entrar na boca e começar a emocionante viagem interna. Os dois brancos ficam por último, sendo que o grande comprimido branco sempre cede a vez ao pequeno.
Inevitavelmente, a cada espetáculo, o comprimido grande oferece gentilmente a vez ao menor. Esse gesto, mantido até hoje, sempre foi reconhecido por todos como uma demonstração de desprendimento e companheirismo, diante da fragilidade e da timidez do pequeno comprimido. Certamente foi o que cativou o público, que a cada evento comparecia mais. Todos comentavam a gentileza do comprimido que, mesmo sendo muito maior, cedia a vez.
Porém, houve um momento em que uma denúncia terrível colocou em cheque a boa intenção e até o caráter do grande comprimido branco.
A denúncia era fundada no fato de que os comprimidos coloridos consomem pouquíssimo líquido ao deslizarem pela garganta. Portanto, o comprimido branco, ao ceder a vez ao frágil comprimidinho e ficar por último, usufruía de praticamente metade da água de coco do copo. Não havia nada de companheirismo nisso, mas sim puro interesse. Tratava-se de um aproveitador!
A notícia fez tanto sentido, que espalhou-se rapidamente. A imprensa deu destaque, com maldosas entrevistas entre o público. O “comprimido branco desmascarado” foi a grande fofoca do momento.
Todos aguardaram ansiosamente o próximo espetáculo, para ver o comportamento dos comprimidos depois do escândalo. Segundo os noticiários, os coloridos, ao tomarem conhecimento da denúncia, se revoltaram e quase expulsaram o branco do grupo. Só não o fizeram porque a sua permanência era questão de ordem médica.
Toda a cidade comentava o fato, sendo voz geral de que o comprimido branco seria a tal ponto repudiado pelo público que sua carreira estaria encerrada após a próxima apresentação. 
Finalmente, o decisivo evento se iniciou. Fez-se um silêncio absoluto no público quando o apresentador chamou os comprimidos, e como sempre os primeiros levados à boca foram os coloridos. Todos estavam extremamente nervosos. Os vermelhos consumiram mais líquido do que de costume, por isso o comprimido verde desceu pela garganta, praticamente sem líquido, provocando um “Ohhhh” na plateia.
Enfim, chegou o momento mais aguardado, dos dois comprimidos brancos se apresentarem. Toda a plateia percebeu a grande quantidade de água de coco ainda restante no copo, e os comentários formaram um vozerio alto e contínuo.
Como sempre, o comprimido grande cedeu a vez ao pequenininho, que deslizou pela garganta sob aplausos, pois todos sabiam de sua inocência, e que sempre foi “usado” pelo maior.
Chegou o momento fatídico: o grande comprimido branco se apresentou.
Imediatamente, uma vaia crescente tomou conta do estádio. Gritos de “fora!”, “aproveitador!”, em coro.
O comprimido branco não se moveu. Permaneceu de pé, durante um bom tempo, absorvendo a vaia estrondosa. Nem sequer subiu à boca, ao ser chamado pelo autofalante.
De repente, não conseguiu mais se controlar. Com a fisionomia contraída, sua emoção explodiu num grito: – Parem! Parem! Eu quero falar! Eu quero falar!
O público se calou, talvez por curiosidade, e resolveu ouvi-lo. Sob forte emoção, ele iniciou um discurso.
– Eu não sou o que vocês dizem! Não sou um aproveitador! Sou apenas um comprimido! Eu não sinto gosto! Quem sente o gosto são vocês, humanos! São vocês que têm paladar, são vocês que sentem o prazer da água de coco! Eu apenas caio na garganta! O meu único prazer é a viagem pelas entranhas do corpo, me dissolvendo até desaparecer! Me deixem em paz! Me deixem cumprir a minha missão!
As lágrimas o impediram de prosseguir. Mas bastou. O público continuou em completo silêncio, deglutindo aquelas verdades tão claras. E pouco a pouco, começaram a compreender a trama que os envolveu: a denúncia fora mera invenção da imprensa, unicamente para conseguir audiência. Não hesitaram em armar aquele plano diabólico, visando exclusivamente o lucro, ainda que destruindo um inocente. Mas, naquele momento, depois do desabafo emocionado do comprimido branco, todos os presentes acabaram percebendo a injustiça a que foram induzidos a praticar.
O comprimido, ainda em pranto, com as mãos sobre o rosto, começou a ouvir os primeiros gritos de “Viva o branco!”, que acabaram tomando conta do estádio.
Finalmente, sob ovação, o grande comprimido branco deslizou pela língua e entrou na garganta, iniciando sua derradeira viagem.
A justiça dessa vez venceu.