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terça-feira, 6 de setembro de 2016

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 14 • A pasta Tudo



HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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A Pasta Tudo

No arquivo de documentos há uma pasta que destoa das outras: a Pasta Tudo. Ela jamais foi aceita, sempre malvista por todas as outras. No bate-papo informal entre elas, depois do expediente e até mesmo durante o trabalho, ela é constantemente criticada e ridicularizada.
“Não posso aceitar que os estratos bancários, que me pertencem por direito, passem antes por essa impostora!” – esbraveja a Pasta Bancos, visivelmente irritada – “Ela mistura os meus estratos com notinhas de compras, com talõezinhos vulgares e até rabiscos de rascunho! Isso é um ultraje!” E a pasta Médicos acrescenta: “Ela açambarca até as receitas dos médicos e os resultados de exames! Não respeita nem a saúde dos humanos!” A Pasta Impostos põe mais lenha na fogueira: “Ela bagunça tudo! Já atrasou o pagamento do IPTU, perdido naquela zorra!” A Pasta Garantias também a agride: “E que nome ridículo, completamente sem sentido: ‘Tudo’! Vejam só! Tudo significa... tudo! Quer dizer que ela se acha a dona de nós todas! Que pode ficar com tudo o que nos pertence!”
Todas se mostram igualmente indignadas, e agressões desse tipo são cada vez mais frequentes, alastrando a revolta por todo o arquivo. Ninguém tolera mais sequer olhar a Pasta Tudo, que a cada dia fica mais abarrotada, tanto de importantes documentos quanto de notinhas simples e até de cópias xerox, enquanto as outras vão minguando, desatualizadas e raramente consultadas. Os humanos se habituaram a buscar diretamente na Pasta Tudo e colocam nela todas as contas e documentos novos.
A situação, já insuportável, chegou aos ouvidos do Diretor do arquivo, que acaba de solicitar uma reunião geral das pastas em seu escritório, para tentar um acordo. 
O Diretor inicia a reunião colocando o problema de maneira formal: diz que percebeu “um pequeno desentendimento entre uma das pastas e as demais, quanto ao nome e função”, e que “esta reunião deverá restabelecer o bom andamento do trabalho”.
Em seguida, pede que designem uma representante das pastas “insatisfeitas”, para apresentar os argumentos sobre o “porquê da insatisfação”.
Levantam-se imediatamente as mais revoltadas: a Pasta Bancos, a Médicos, a Impostos e a Garantias.
“Muito bem... Então, cada uma falará por vez”, diz o Diretor, “e depois cederei a vez à Pasta Tudo, para sua defesa.”
A aparente organização inicial não dura mais do que isso, pois todas falam ao mesmo tempo. A Pasta Bancos, com sua voz grave e poderosa: “Ela está nos roubando! Está se apropriando do que nos pertence!” As outras gritam juntas: “Ela está bagunçando o nosso arquivo!” “Ela se apropriou dos documentos, das contas de luz, de água e de gás...” “E dos contratos, das notas do automóvel e dos consertos da casa!” “Ela é uma impostora!” “Ela se aproveita do nome que tem e pega tudo! Está nos deixando vazias!” “Ela está nos matando!”
“Chega!!!!” – Grita o Diretor. Como um rádio sendo desligado, todas se calam, mas com a respiração ofegante, bufando palavras reprimidas. E o Diretor conclui:
“Quero ouvir a Pasta Tudo. E exijo que todas mantenham respeito!”
A Pasta Tudo entra na sala, sob um murmúrio baixo e contínuo, formado pelos cochichos das outras. O Diretor, impassível, a acompanha com o olhar até que ela ocupe o seu lugar, visivelmente amedrontada, diante de tantos olhares ameaçadores.
“Quero ouvir as suas razões para agir do modo com está agindo com suas companheiras”, diz o Diretor. Mas a gritaria recomeça: “Que razão?” ”Sem essa de razão!” “Que negócio é esse de razão?” “A razão é acabar com ela!”
“Chega!!!!” E dessa vez o Diretor dá um soco na mesa. “Exijo respeito!!! Quero ouvir a Pasta Tudo e se outra interromper será convidada a se retirar!”
Só assim elas se contêm, mas o clima permanece tenso. Pasta Tudo está tremendo de medo e não consegue sequer concatenar os pensamentos. Impossível falar qualquer coisa nessa hora. E no entanto o que ela mais deseja é poder explicar que jamais pensou em tirar nada das outras; que é apenas uma pasta provisória, com os papéis que estão em uso e que todos serão arquivados nas outras, mais tarde... Sua missão no arquivo é evitar o abrir e fechar constante das outras pastas, para dar-lhes segurança e comodidade. Mas como explicar tudo isso nesse ambiente de ódio e revolta? Quem iria acreditar? Quem ao menos a ouviria?
Faz-se um silêncio de morte. A Pasta Tudo sente-se encurralada, acha que todas vão atacá-la assim que ela fale. E para piorar, vem a cobrança do Diretor:
“Fale, explique a situação! Defenda-se!”
Pasta Tudo faz um grande e último esforço para conseguir falar. As palavras não saem, mas devido ao grande esforço, uma de suas alças arrebenta e ela, abarrotada como está, vomita todo o seu conteúdo, numa avalanche de papéis que se espalha sobre a mesa. São contas de luz, fotografias, rascunhos, atestados médicos, exames, receitas de comida e toda sorte de notas fiscais, de inúmeras lojas e supermercados. E a pasta, semivazia, cai inerte, defronte ao Diretor.
 “O que foi que aconteceu? O que foi que aconteceu?” – Gritam todos, aflitos por se verem ali, derramados na mesa. “Por que nos expulsaram?” – Grita a conta de gás. “Por que nos espalharam dessa maneira?” – Grita um exame de sangue.   
  “Vocês estavam prisioneiros, agora vão se libertar!” – Responde, com voz pausada, o Diretor.
Todas as outras pastas, ao verem aquela papelada espalhada à sua frente, se manifestam: “Meus atestados médicos estão de volta!” ”Oh, minhas contas de luz, todas aqui!” “Minhas notas ficais, vou tê-las novamente!” “Meus extratos de bancos, eles voltarão para mim!”
Mas as reações imediatas dos documentos amontoados sobre a mesa são totalmente inesperadas e chocantes. Quem primeiro fala é a graciosa Notinha Fiscal de butique:
“Quem disse que somos prisioneiros? Ao contrário, agora é que estamos livres!”
As pastas se entreolham, achando aquilo muito estranho. Mas o que o Exame Médico diz em seguida é que as deixa perplexas:
“Sou casado com a Notinha Fiscal e ela disse a pura verdade! Nós éramos antes prisioneiros, cada um trancado em sua pasta. Agora convivemos todos em perfeita harmonia!”
 O Diretor intervém: “Vocês estão completamente fora de ordem! A Pasta Tudo, ao juntar vocês, desorganizou todo o arquivo!”
“Está enganado, senhor! Quando precisamos ser usados, nós nos apresentamos, estamos sempre dispostos!” – retrucou o Exame Médico. Em seguida, o Certificado de Garantia, grampeado à Nota de Compra, completa:
“Nunca deixaram de nos encontrar, sempre atendemos prontamente!” 
E a Nota de Compra continua: “Fizemos aqui muitas amizades, convivemos com assuntos diferentes, trocamos experiências... Nós vivemos felizes, finalmente!”
“A Pasta Tudo foi a nossa libertação!” – Grita o Extrato Bancário.
Tanto o Diretor quanto as outras pastas, cada vez mais perplexos, não sabem que atitude tomar. Enquanto isso, a Pasta Tudo parece completamente inconsciente, imóvel, esparramada na mesa. O Diretor entende ser a oportunidade para restabelecer a ordem e se dirige a todos: 
“De qualquer forma, todos terão de voltar às suas antigas pastas. A Pasta Tudo se desmantelou, parece que chegou ao fim.” “Ohhhhh!” – Exclamam os papéis espalhados na mesa, enquanto as pastas não escondem o riso de vingança estampado em suas capas.
Mas esse contentamento acaba logo ao verem a Pasta Tudo, lentamente se levantando. A gratidão demonstrada pelos papéis lhe revigorou a energia. Com esforço, ela se põe de pé e finalmente consegue falar:
“Perdoem eu não ter morrido, como vocês desejavam...” – Diz, ironicamente. “Mas parece ter ficado claro que eu não sou tão má assim...”
“Oh, minha pastinha querida!” – Grita a Notinha Fiscal. “Que bom ver você recuperada!” Nesse instante, da Partitura Musical, escondida entre os documentos, emana uma valsa de Chopin em solo de piano, e todos os papéis choram de felicidade. Menos as outras pastas, sisudas, caladas, e o Diretor pensando numa solução para o caso.
A Pasta Tudo, agora recuperada, continua:
“Os papéis que carrego têm liberdade para ir e vir. Eles podem ficar divididos como vocês querem... Ou podem ficar todos juntos comigo. Não sou eu quem decide”.
As pastas, pela primeira vez caladas, embora sisudas, ouvem o que a Tudo tem a dizer.
"Tenho certeza que depois de algum tempo, todos vão naturalmente fazer parte da organização. Quando ficarem mais velhos, amadurecerem, terão de fugir da agitação e descansar nos arquivos das suas pastas... Por enquanto estão no vigor da juventude, são atuantes, a qualquer momento podem ser requisitados pelos humanos, para conferir, para demonstrar sua validade! Por favor, deixem que eles curtam a juventude, que se conheçam, que fiquem misturados!”
Pela emoção que transmitiu em cada palavra de seu discurso, a Pasta Tudo estava verdadeiramente “iluminada”. Foi tão convincente, que fez as pastas passarem de revoltadas a pensativas. Uma olha a outra, em silêncio, e todas refletem melhor sobre suas próprias convicções. O Diretor ajeita o óculos e coça os poucos cabelos que lhe restam.
Vagarosamente, todos os papéis começam a ocupar novamente a Pasta Tudo, que agora se mostra totalmente recuperada do forte abalo emocional.
O Diretor faz suas conjecturas. Talvez seja melhor continuar tudo do jeito que estava. E agora lhe parece o momento certo de tomar essa decisão.
“Bem...” – Inicia a falar, calma e pausadamente: “Eu proponho que se dê um prazo de seis meses de permanência de documentos na Pasta Tudo. Depois desse tempo, os documentos terão de ocupar as suas pastas nativas. A Pasta Tudo servirá como uma primeira habitação para os papéis de todos os tipos, mas somente enquanto forem jovens. Todos aceitam?”
As pastas, como sempre, se entreolham. Mas dessa vez, com um semblante mais tranquilo. A representante principal, a Pasta Bancos, se manifesta:
“Se o senhor Diretor garantir que o prazo será cumprido... Aceitamos”.
“Cumpriremos o prazo, podem estar certos.” – Adianta-se a Pasta Tudo, com firmeza e um discreto sorriso. E o Diretor suspira aliviado:
“Muito bem, estamos entendidos. Podemos voltar ao trabalho.”