HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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• A Pasta Tudo
No arquivo de documentos há uma pasta que destoa das outras: a
Pasta Tudo. Ela jamais foi aceita, sempre malvista por todas as outras. No
bate-papo informal entre elas, depois do expediente e até mesmo durante o
trabalho, ela é constantemente criticada e ridicularizada.
“Não
posso aceitar que os estratos bancários, que me pertencem por direito, passem
antes por essa impostora!” – esbraveja a Pasta Bancos, visivelmente irritada –
“Ela mistura os meus estratos com notinhas de compras, com talõezinhos vulgares e até rabiscos de
rascunho! Isso é um ultraje!” E a pasta Médicos acrescenta: “Ela açambarca até as receitas dos
médicos e os resultados de exames! Não respeita nem a saúde dos humanos!” A Pasta Impostos põe mais lenha na fogueira: “Ela
bagunça tudo! Já atrasou o
pagamento do IPTU, perdido naquela zorra!” A Pasta Garantias também a agride:
“E que nome ridículo, completamente sem sentido: ‘Tudo’! Vejam só! Tudo
significa... tudo! Quer dizer que ela se acha a dona de nós todas! Que pode
ficar com tudo o que nos pertence!”
Todas se mostram igualmente indignadas, e agressões desse tipo são cada vez mais frequentes,
alastrando a revolta por todo o arquivo. Ninguém tolera mais sequer olhar a
Pasta Tudo, que a cada dia fica mais abarrotada, tanto de importantes
documentos quanto de notinhas simples e até de cópias xerox, enquanto as outras
vão minguando,
desatualizadas e raramente consultadas. Os humanos se habituaram a buscar
diretamente na Pasta Tudo e colocam nela todas as contas e documentos novos.
A situação,
já insuportável, chegou aos ouvidos do Diretor do arquivo, que acaba de
solicitar uma reunião
geral das pastas em seu escritório, para tentar um acordo.
O Diretor inicia a reunião colocando o problema de maneira formal: diz que percebeu “um
pequeno desentendimento entre uma das pastas e as demais, quanto ao nome e função”, e que “esta reunião deverá restabelecer o bom
andamento do trabalho”.
Em seguida, pede que designem uma representante das pastas
“insatisfeitas”, para apresentar os argumentos sobre o “porquê da insatisfação”.
Levantam-se imediatamente as mais revoltadas: a Pasta Bancos, a
Médicos, a Impostos e a Garantias.
“Muito bem... Então,
cada uma falará por vez”, diz o Diretor, “e depois cederei a vez à Pasta Tudo,
para sua defesa.”
A aparente organização inicial não
dura mais do que isso, pois todas falam ao mesmo tempo. A Pasta Bancos, com sua
voz grave e poderosa: “Ela está nos roubando! Está se apropriando do que nos
pertence!” As outras gritam juntas: “Ela está bagunçando o nosso arquivo!” “Ela se
apropriou dos documentos, das contas de luz, de água e de gás...” “E dos
contratos, das notas do automóvel e dos consertos da casa!” “Ela é uma
impostora!” “Ela se aproveita do nome que tem e pega tudo! Está nos deixando
vazias!” “Ela está nos matando!”
“Chega!!!!” – Grita o Diretor. Como um rádio sendo desligado,
todas se calam, mas com a respiração ofegante, bufando palavras reprimidas. E o Diretor conclui:
“Quero ouvir a Pasta Tudo. E exijo que todas mantenham respeito!”
A Pasta Tudo entra na sala, sob um murmúrio baixo e contínuo,
formado pelos cochichos das outras. O Diretor, impassível, a acompanha com o
olhar até que ela ocupe o seu lugar, visivelmente amedrontada, diante de tantos
olhares ameaçadores.
“Quero ouvir as suas razões para agir do modo com está agindo com suas companheiras”, diz o
Diretor. Mas a gritaria recomeça:
“Que razão?” ”Sem essa de razão!” “Que negócio é esse de razão?” “A razão é acabar com ela!”
“Chega!!!!” E dessa vez o Diretor dá um soco na mesa. “Exijo
respeito!!! Quero ouvir a Pasta Tudo e se outra interromper será convidada a se
retirar!”
Só assim elas se contêm, mas o clima permanece tenso. Pasta Tudo
está tremendo de medo e não
consegue sequer concatenar os pensamentos. Impossível falar qualquer coisa
nessa hora. E no entanto o que ela mais deseja é poder explicar que jamais
pensou em tirar nada das outras; que é apenas uma pasta provisória, com os
papéis que estão
em uso e que todos serão
arquivados nas outras, mais tarde... Sua missão no arquivo é evitar o abrir e
fechar constante das outras pastas, para dar-lhes segurança e comodidade. Mas como explicar
tudo isso nesse ambiente de ódio e revolta? Quem iria acreditar? Quem ao menos
a ouviria?
Faz-se um silêncio de morte. A Pasta Tudo sente-se encurralada, acha
que todas vão atacá-la assim que ela fale. E para piorar, vem a cobrança do
Diretor:
“Fale, explique a situação! Defenda-se!”
Pasta Tudo faz um grande e último esforço para conseguir falar. As
palavras não saem, mas devido
ao grande esforço,
uma de suas alças
arrebenta e ela, abarrotada como está, vomita todo o seu conteúdo, numa
avalanche de papéis que se espalha sobre a mesa. São contas de luz, fotografias,
rascunhos, atestados médicos, exames, receitas de comida e toda sorte de notas
fiscais, de inúmeras lojas e supermercados. E a pasta, semivazia, cai inerte,
defronte ao Diretor.
“O que foi que aconteceu? O
que foi que aconteceu?” – Gritam todos, aflitos por se verem ali, derramados na
mesa. “Por que nos expulsaram?” – Grita a conta de gás. “Por que nos espalharam
dessa maneira?” – Grita um exame de sangue.
“Vocês estavam
prisioneiros, agora vão
se libertar!” – Responde, com voz pausada, o Diretor.
Todas as outras pastas, ao verem aquela papelada espalhada à sua
frente, se manifestam: “Meus atestados médicos estão de volta!” ”Oh, minhas contas de
luz, todas aqui!” “Minhas notas ficais, vou tê-las novamente!” “Meus extratos
de bancos, eles voltarão
para mim!”
Mas as reações
imediatas dos documentos amontoados sobre a mesa são totalmente inesperadas e
chocantes. Quem primeiro fala é a graciosa Notinha Fiscal de butique:
“Quem disse que somos prisioneiros? Ao contrário, agora é que
estamos livres!”
As pastas se entreolham, achando aquilo muito estranho. Mas o que
o Exame Médico diz em seguida é que as deixa perplexas:
“Sou casado com a Notinha Fiscal e ela disse a pura verdade! Nós
éramos antes prisioneiros, cada um trancado em sua pasta. Agora convivemos
todos em perfeita harmonia!”
O Diretor intervém: “Vocês
estão completamente fora
de ordem! A Pasta Tudo, ao juntar vocês, desorganizou todo o arquivo!”
“Está enganado, senhor! Quando precisamos ser usados, nós nos
apresentamos, estamos sempre dispostos!” – retrucou o Exame Médico. Em seguida,
o Certificado de Garantia, grampeado à Nota de Compra, completa:
“Nunca deixaram de nos encontrar, sempre atendemos
prontamente!”
E a Nota de Compra continua: “Fizemos aqui muitas amizades,
convivemos com assuntos diferentes, trocamos experiências... Nós vivemos
felizes, finalmente!”
“A Pasta Tudo foi a nossa libertação!” – Grita o Extrato Bancário.
Tanto o Diretor quanto as outras pastas, cada vez mais perplexos,
não sabem que atitude
tomar. Enquanto isso, a Pasta Tudo parece completamente inconsciente, imóvel,
esparramada na mesa. O Diretor entende ser a oportunidade para restabelecer a
ordem e se dirige a todos:
“De qualquer forma, todos terão de voltar às suas antigas
pastas. A Pasta Tudo se desmantelou, parece que chegou ao fim.” “Ohhhhh!” –
Exclamam os papéis espalhados na mesa, enquanto as pastas não escondem o riso de vingança estampado em suas capas.
Mas esse contentamento acaba logo ao verem a Pasta Tudo,
lentamente se levantando. A gratidão demonstrada pelos papéis lhe revigorou a energia. Com esforço, ela se põe de pé e finalmente consegue
falar:
“Perdoem eu não
ter morrido, como vocês desejavam...” – Diz, ironicamente. “Mas parece ter
ficado claro que eu não
sou tão má assim...”
“Oh, minha pastinha querida!” – Grita a Notinha Fiscal. “Que bom
ver você recuperada!” Nesse instante, da Partitura Musical, escondida entre os
documentos, emana uma valsa de Chopin em solo de piano, e todos os papéis
choram de felicidade. Menos as outras pastas, sisudas, caladas, e o Diretor
pensando numa solução
para o caso.
A Pasta Tudo, agora recuperada, continua:
“Os papéis que carrego têm liberdade para ir e vir. Eles podem
ficar divididos como vocês querem... Ou podem ficar todos juntos comigo. Não sou eu quem decide”.
As pastas, pela primeira vez caladas, embora sisudas, ouvem o que
a Tudo tem a dizer.
"Tenho certeza que depois de algum tempo, todos vão naturalmente fazer parte da
organização. Quando ficarem
mais velhos, amadurecerem, terão
de fugir da agitação
e descansar nos arquivos das suas pastas... Por enquanto estão no vigor da juventude, são atuantes, a qualquer momento
podem ser requisitados pelos humanos, para conferir, para demonstrar sua
validade! Por favor, deixem que eles curtam a juventude, que se conheçam, que fiquem misturados!”
Pela emoção
que transmitiu em cada palavra de seu discurso, a Pasta Tudo estava
verdadeiramente “iluminada”. Foi tão convincente, que fez as pastas passarem de revoltadas a pensativas.
Uma olha a outra, em silêncio, e todas refletem melhor sobre suas próprias
convicções. O Diretor ajeita
o óculos e coça
os poucos cabelos que lhe restam.
Vagarosamente, todos os papéis começam a ocupar novamente a Pasta
Tudo, que agora se mostra totalmente recuperada do forte abalo emocional.
O Diretor faz suas conjecturas. Talvez seja melhor continuar tudo
do jeito que estava. E agora lhe parece o momento certo de tomar essa decisão.
“Bem...” – Inicia a falar, calma e pausadamente: “Eu proponho que
se dê um prazo de seis meses de permanência de documentos na Pasta Tudo. Depois
desse tempo, os documentos terão
de ocupar as suas pastas nativas. A Pasta Tudo servirá como uma primeira habitação para os papéis de todos os
tipos, mas somente enquanto forem jovens. Todos aceitam?”
As pastas, como sempre, se entreolham. Mas dessa vez, com um
semblante mais tranquilo. A representante principal, a Pasta Bancos, se
manifesta:
“Se o senhor Diretor garantir que o prazo será cumprido...
Aceitamos”.
“Cumpriremos o prazo, podem estar certos.” – Adianta-se a Pasta
Tudo, com firmeza e um discreto sorriso. E o Diretor suspira aliviado:
“Muito bem, estamos entendidos. Podemos voltar ao trabalho.”