HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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• Pelas lentes da vida
Maron enxergava de longe, Ren só via de perto. Quando um estava no
rosto, o outro ficava no bolso. Amigos inseparáveis, viviam separados, pois
somente tarde da noite conseguiam se falar. Quietos, na mesinha de cabeceira,
finalmente podiam comentar as façanhas do dia.
Maron era mais seguro, mais senhor de si, e feliz com o seu
trabalho. Adorava olhar as paisagens da orla, sempre reparava no contorno das
montanhas, que ia diminuindo pouco a pouco, até se juntar com o mar da lagoa. Nos
fins de tarde, maravilhava-se com o pôr do Sol, sempre diferente do anterior. Observava
os raios de luz transpassando as folhas das árvores, fascinava-se com os
pássaros... Achava linda a Natureza!
Gostava também de olhar as ruas, os automóveis, aquele monte de
gente indo e vindo. Entretinha-se depois com a visão dos botões luminosos do
elevador, meio desfocados, pois ele era especialista em ver ao longe. Gostava
de ver a porta do elevador se abrir, e logo depois fechar-se novamente.
Aguardava o habitual momento de entrar naquela sala grande, onde podia apreciar
muitos rostos em volta da mesa comprida, todos falando muito. Era a costumeira
e demorada reunião diária. Bem mais tarde, faria todo o percurso de volta,
vendo novamente o elevador, as ruas, o volante e os controles do automóvel,
esses de relance, enquanto, através do para-brisa, se assustava um pouco com os
inúmeros veículos que passavam depressa à sua frente, até chegar em casa.
Seu amigo Ren, ao contrário, vivia triste. Nas saídas à rua,
permanecia quase o tempo todo no bolso, a não ser nos momentos de conferir uma
conta, de assinar, ou de ler alguma revista ou jornal. Ren atuava mais dentro
de casa, à noite, dedicando-se à leitura e principalmente à informática. Estava
acostumado à visão de um designer, reparava nos detalhes dos seus desenhos, primeiramente
rabiscados a lápis, depois transferidos para o computador, e ali acompanhava de
perto os traços riscando a tela, encontrando-se ou cruzando com outros, até
formar uma figura completa. Depois, escolhidas as cores, via cada uma ocupar
determinado espaço, até o desenho ficar pronto.
Em outros momentos, seguia bem de perto as palavras de um texto,
que às vezes parecia não ter mais fim. Lia páginas e páginas, sempre em close,
voltando às vezes para corrigir uma letra digitada errado, colocar uma vírgula
ou um sinal qualquer.
Mas apesar de todos esses trabalhos, Ren não era feliz. Faltava-lhe
alguma coisa, um objetivo na vida, uma realização pessoal... Não sabia o quê,
mas não lhe bastava viver sendo somente usado, e mais nada.
Enquanto ele trabalhava, à noite, Maron permanecia na mesinha de
cabeceira do quarto, quieto, com suas hastes dobradas sob o corpo, pronto para
qualquer eventualidade. No entanto, sentia-se tranquilo, feliz com seu trabalho
de ver de longe. Não desejava mais nada, não tinha os mesmos questionamentos do
amigo.
O tempo passava, Maron atuando de dia, pelas ruas e salas de
empresas, e Ren mais à noite, nos detalhes de desenhos e textos, um completando
o trabalho do outro. E os anos se encarregaram de formar uma sólida amizade
entre eles.
Certa noite, Maron chegou com uma notícia preocupante: no dia
seguinte iria à ótica, para substituir suas lentes. Essa troca de lentes já
havia acontecido antes, por isso não deveria ser motivo de preocupação, ao
contrário. Na ocasião, os dois foram juntos, e de lá voltaram felizes, ambos
enxergando bem melhor. Mas agora havia uma diferença fundamental: Maron iria
sozinho à ótica.
“Por que não vamos juntos?”, perguntou Ren, pressentindo que
alguma coisa ruim estava por vir.
“Bobagem”, comentou Maron, tranquilizando o amigo. “Vou só
atualizar o grau da lente, como no ano passado! Na certa você irá depois!”
“Não sei, Maron... Não sei porque, mas estou muito preocupado...”,
repetia Ren. “Li um artigo sobre uma nova tecnologia... Uma lente que enxerga
de perto e de longe... Uma coisa muito estranha!”
Mas o amigo continuou otimista: “Que nada, Ren, as lentes modernas
são de melhor qualidade! Vamos conseguir ver melhor, só isso! Fique tranquilo!”
Ren finalmente sorriu: “É... Deve ser bobagem minha!”
Manhã seguinte, cedinho, lá foi Maron, olhando o intenso movimento
do trânsito, em direção à ótica, numa rua do Centro. Ao passar pela vitrine da
ótica, compadeceu-se de ver tantos semelhantes seus, ali deitados, aguardando
uma oportunidade. Logo o levaram para o laboratório, e, como numa anestesia
geral, tudo se apagou.
Quando acordou, viu um mundo estranho. Olhava as coisas bem de
pertinho e todas estavam nítidas, como nunca tinha visto. Tão nítidas quanto as
que via de longe! Que coisa estranha! Foi quando ouviu a voz do vendedor: “O
senhor fez uma boa troca, as lentes multifocais são muito melhores!” Aí ele
entendeu tudo: suas novas lentes eram daquela tecnologia estranha... Eram
aquelas que o Ren tinha medo!
A cada coisa que focava, mais se surpreendia. E percebeu algo
ainda mais estranho: ao olhar para distante, através de sua parte superior,
tudo era normal, como sempre foi. Mas à medida em que fosse baixando o olhar, ia
enxergando os detalhes, cada vez com mais nitidez, até se igualar à visão do
seu amigo Ren. Uma coisa mágica, inacreditável!
Maron pensou imediatamente no amigo. Durante todo o percurso de
volta, tentou arranjar argumentos que justificassem a sobrevivência dos dois.
Mas cada vez era mais evidente que ele agora ficaria sozinho. O que seria do
Ren, seria dispensado? Morreria?
Atormentado com tais pensamentos, chegou ao quarto de sua casa.
Foi posto ao lado do o amigo, na mesinha de cabeceira, mas antes que pudessem
falar qualquer coisa, Ren foi levado ao rosto, por uns breves segundos. Apenas
um teste. Em seguida Ren voltou para a mesinha e ele retornou ao rosto. Assim,
não tiveram tempo sequer de trocar uma palavra.
Maron voltou para a rua e ficou o resto do dia fora de casa.
Estava tão aflito com o amigo, que nem se importou com a novidade de enxergar
de perto. Só pensava no Ren, durante a passagem pelas ruas, pela subida do
elevador, e durante a costumeira reunião na grande sala. Nenhum prazer sentiu
ao enxergar com perfeição os detalhes, assinar documentos, ler colunas de
jornais, tampouco reparou no pôr do Sol. Nada disso conseguiu afastar a preocupação
com o seu amigo, que pela primeira vez ficara em casa. Retornou, como sempre,
cansado, já no início da noite.
Diante do computador, pela primeira vez, ele – e não o Ren,
examinou de perto as palavras dos textos e seguiu os traços de um desenho. Em
vez de se alegrar com a nitidez de sua visão, mais se entristeceu, cheio de
compaixão pelo amigo renegado.
Na hora de costume, foi deixado na mesinha de cabeceira, e
felizmente ainda estava lá o seu amigo Ren. Mas estava visivelmente desolado. Assim
que o viu chegar, disse em tom de brincadeira, disfarçando a profunda mágoa:
“Eu já sei da verdade. Você agora é moderno, é multifocal! Não precisa mais de
mim, você faz todas as funções. Nada mais me resta...”
“É verdade, minha lente é multifocal, sim, mas não penso em me
afastar de você. Nunca!” – Respondeu Maron, seriamente.
“Não depende de sua vontade, meu amigo. É o progresso tecnológico,
não podemos impedir! Acho que essa é a última vez que nos vemos.” – Retrucou
Ren.
O que ele falou fazia sentido. Ren foi confinado numa gaveta,
longe de seu amigo.
Nos dias seguintes, somente
Maron foi usado, de manhã à noite. Enxergava com perfeição, desde os detalhes
até o horizonte distante. No entanto, essa nova vida não lhe trouxe felicidade.
Deixou de se alegrar com a Natureza, não se importou mais em ver o por do Sol,
fazia seu trabalho rotineiramente, apenas por obrigação.
Toda noite, ao voltar para o seu canto, esperava em vão encontrar
o amigo. Ele não foi jogado fora, com certeza. Devia estar guardado em alguma
daquelas gavetas. Maron tentava imaginar como era grande a sua tristeza, sem
poder ler nem acompanhar os desenhos sendo feitos, trancado numa gaveta... Se
ao menos soubesse em qual gaveta, quem sabe tivesse uma chance de vê-lo, de
conversar com ele...
Mas a situação real era bem diferente do que Maron imaginava. Na
verdade, Ren não estava mais naquela casa. Foi dado de presente ao jardineiro,
que vinha semanalmente cortar a grama do jardim, e sempre se queixava de não
enxergar de perto. O óculos foi perfeito para ele. Passou a ler nitidamente as
recomendações, no verso dos pacotinhos das sementes que plantava.
Quando o jardineiro voltou para sua casa, o óculos também teve
grande utilidade, permitindo que ele fizesse muitas coisas que já estavam se
tornando impossíveis. Ficou radiante com o presente, e muito agradecido, tanto
que comentou com a “patroa”: “Um óculos muito bom, eu posso enxergar todas as
letrinhas!” E ela também se entusiasmou: “Que armação bonita, toda prateada!
Deve ter custado muito caro! Que presentão!”
Ren animou-se um pouco com aquelas palavras. Sentiu-se
reconfortado em saber que teria uma nova casa, mas seria muito difícil
reconstruir sua vida, criar novos hábitos. A perda do amigo também o
entristecia muito, assim como a ausência do computador, a única coisa que o
alegrava. Pelo menos tinha a telinha do celular do jardineiro, e até que achou
interessante a tarefa de ler as inscrições nos pacotinhos de sementes.
Em poucos dias, Ren habituou-se com sua nova vida. Não achava nada
confortável viajar pendurado na gola da camisa do jardineiro, mas conseguiu
decorar os nomes de várias plantas, e se distraía pesquisando os telefones na
telinha do celular. Não fosse a saudade do amigo Maron, talvez a vida andasse
bem. Compreendeu então que de amigo a gente não se esquece. “Quem sabe”,
pensava sempre, “um dia ainda o encontre...” E com esse pensamento, tentava deixar
a saudade de lado.
Semanalmente o jardineiro o levava à sua antiga casa, sempre pendurado
na gola da camisa, a não ser quando precisasse ver um detalhe, plantar alguma
muda ou semente. Porém, nessas horas, Maron estava sempre lá dentro, e o
encontro dos dois nunca acontecia.
Um dia, o jardineiro teve que
ir na agropecuária, no Centro, para comprar novas sementes, e o levou, como
sempre, pendurado na gola. Ao ser colocado no rosto para examinar os nomes dos
pacotinhos, ouviu uma voz conhecida: “Bom dia, jardineiro, tudo bem com você?”
Era o dono de sua antiga casa, e bem defronte a seus olhos estava
o amigo Maron. Foi um encontro tão inesperado e emocionante, que os dois
ficaram mudos, se olhando.
Perguntou o dono da casa: “Gostando do óculos?”. O jardineiro nem
sabia como elogiar o presente: “Se tô gostando? É uma maravilha! Agora tô
enxergando tudinho, tudinho! Foi um presentão que o senhor me deu, pode
acreditar!”
Durante o diálogo, Ren e Maron não pararam de se olhar, e disseram
coisas em silêncio –, um poder que só as coisas possuem.
Disse Ren: “Olá, meu amigo! Que bom ver você!”
Maron ficou embaçado de emoção. Mas respondeu: “Sinceramente, meu
amigo, pensei que ainda estivesse trancado na gaveta. Estou muito feliz em vê-lo
trabalhando novamente! E então, está gostando do que vê?”
“Tenho novas tarefas.
Agora, gosto de ver plantas, sementes... Mas ainda vejo muita coisa virtual.
Não em computador, mas no celular. A telinha diminuiu...”
Os dois riram muito, e lágrimas de alegria embaçaram suas lentes.
“É isso, meu amigo. Nossa vida é ajudar os humanos a ver o mundo”,
disse Maron. “É uma missão muito nobre, você já pensou nisso?”
Ren demorou-se refletindo, antes de responder: “Você falou uma
verdade. Nós vivemos para ajudá-los a viver... Sem dúvida, essa é uma nobre
missão! Nunca havia pensado assim...”
Mas o diálogo foi interrompido bruscamente com a despedida dos
dois homens. O jardineiro voltou a agradecer o valioso presente, pendurou Ren
na gola da camisa e saiu para a rua. Só houve tempo para Maron gritar: “Ren,
meu amigo! Seja feliz! Nós nos encontraremos quando Deus quiser!”
Durante todo o caminho, Ren pensou nas palavras de seu amigo. Elas
o levaram à importante descoberta, do quanto é realmente nobre e valioso o ato
de ajudar um ser humano a enxergar o mundo. Ao ter consciência dessa verdade, sentiu
que ela transformaria sua vida. Não seria mais infeliz, pois agora teria uma
razão de viver. Estava realizado, e por isso, calmo e seguro, como seu amigo Maron.
Que bom poder encontrá-lo de vez em quando...