HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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• GRANDES EVENTOS
História 7
A volta da faquinha Azul
(Continuação de Altos e baixos – maio de 2016)
• GRANDES EVENTOS
História 7
A volta da faquinha Azul
O Torneio Tirinhas é sucesso total, depois da série de recordes,
com os dois facões – Prata e Dourado – revivendo seus tempos de glória.
Nem parece que há pouco mais de seis meses, uma paralização das
suas atividades, motivada pela morte do Pote de Orégano, levou o facão Prata a
uma crise de depressão. Ele e seu amigo Dourado estiveram a ponto de se isolar,
voltando a morar na distante gaveta da churrasqueira. Quem os dissuadiu dessa
ideia desastrosa foi a faquinha Azul, que na época atuava no Torneio, em dias
alternados com o Prata. Durante uma tensa reunião da diretoria, ela propôs
reabrir o Torneio das Tirinhas com a volta da dupla Prata e Dourado, outrora
muito famosa. Ela renunciaria a atuar, em benefício deles. Os dois facões
relutaram, mas acabaram aceitando a proposta com a condição de que ela fizesse
“apresentações especiais” quando convidada. O que, passados mais de seis meses,
nunca aconteceu...
Como o prometido convite não chegava, a faquinha Azul ia ficando
cada vez mais isolada e triste, assistindo ao sucesso dos dois facões somente
pela TV. Para sobreviver, ela acabou tendo
que aceitar as tarefas menores da cozinha. Mas não podia se conformar em envelhecer
daquela maneira. Sabia do talento, da habilidade e capacidade que possuía.
Um dia aconteceu um fato que transformaria sua vida. Faquinha Azul
trabalhava na fritura de um bife, tarefa que aceitara na falta do que fazer, ao
lado do Garfo de Espeto, um jovem recém-chegado, que iniciava suas atividades
profissionais. “Eu sou seu fã”, comentou de repente o Garfo, com um derretido
olhar de admiração. Surpresa e meio envergonhada de estar ali, numa atividade
menor, sem público algum, ela perguntou: “Você já me viu antes?”
“Eu não perdia nenhum espetáculo seu! Quando não podia ir no
estádio, assistia na TV! Eu acho você o máximo! Você tem muito mais estilo do
que aquele facão...!”
Na situação em que se encontrava, sentir-se assim admirada foi um
verdadeiro alento. Em pouco tempo
tornaram-se amigos e confidentes.
Garfo de Espeto a idolatrava. Queria saber de sua vida, queria
saber de tudo o que fosse dela, ouvir tudo. Para a faquinha Azul, essa nova
amizade caiu do céu. Tudo o que precisava era de um amigo assim, para desabafar
a angústia que sentia. Contou a ele toda a sua vida, falou da grande admiração
que sempre teve pelo facão Prata, da amizade entre os dois, contou que ele foi
seu mestre, que a defendeu e incentivou no início de sua carreira, e que por isso
deve a ele o seu sucesso. E quando o viu naquela situação horrível, tendo em
suas mãos a possibilidade de salvá-lo, nem vacilou! Ficou feliz em poder
retribuir, pelo menos um pouco do que recebera...
Contou depois que admira muito a amizade entre o Prata e o Dourado:
o que um faz o outro apoia, sempre foi assim. Por isso, a atitude estranha do
Dourado, não cumprindo a promessa que lhe fez e afastando-se, largando-a de
lado... no seu entender foi compartilhada pelo Prata! Ambos sabem muito bem o
mal que causaram, o quanto era importante para ela manter-se no torneio! Achava
essa atitude, no mínimo, estranha e contraditória, pois eles sempre agiram com
lealdade, sempre foram justos e honestos. “Uma coisa muito estranha mesmo!”,
repetia. Por isso a decepção foi assim tão grande, difícil de suportar!
Contudo, ela é otimista, garantiu que não irá se abater. Disse estar disposta a
reagir, pois sabe o talento que tem, e ainda pode atuar como antes.
Em resumo, foi isso o que contou a faquinha Azul. Garfo de Espeto,
sempre atento, ouviu, comovido, toda a história. E pensava “como a realidade é
tão diferente daquilo que aparenta! Quem poderia imaginar que tudo isso ocorria
nos Torneios das Tirinhas, por baixo do pano, escondido do público, oculto dos
repórteres...”
Com essa revelação, a faquinha Azul, se tornou para ele mais
próxima, mais real do que nunca. Ele sentiu-se mais que um amigo. Apaixonou-se
por ela...
Enquanto isso, bem longe dali, nos escritórios da diretoria do
Torneio Tirinhas, os dois facões mantinham uma conversa com o Diretor de
Eventos sobre o convite de “participação especial” para o próximo espetáculo.
“Por favor não insistam”, dizia o diretor, “eu sei que vocês
prometeram e sei o quanto prezam a amizade com a Azul. Isso é muito louvável,
mas...”
O Prata interrompeu: “Então, se o senhor compreende, há de
concordar! E além de tudo ela é ótima, nós todos sabemos disso!” E o Dourado
completou: “Acho que só vai enriquecer o espetáculo! A faquinha Azul é muito
querida do público! Por favor, permita- nos convidá-la...”
O diretor passou o lenço no rosto, ajeitou a gravata e continuou:
“É muito louvável mas muito arriscado. Isto aqui é um negócio para
dar lucro, não é filantropia. Não podemos desperdiçar as oportunidades. Nós
tivemos a sorte de acertar com a ideia da dupla. Deu certo. Vocês também
atravessam uma boa fase, estão batendo recordes, e recordes atraem público! É o
público que nos interessa, é o que nos mantém vivos! E não estou disposto a
permitir que nada, exatamente nada, mude o rumo positivo em que estamos! Esta
decisão é definitiva, e para o bem de nós todos, podem estar certos!”
Assim, mais uma vez a proposta dos facões foi recusada. Os dois
saíram da reunião, novamente tristes por serem impedidos de convidar a faquinha
Azul, sua amiga de muito tempo. Tanto o Prata quanto seu amigo Dourado se
sentiam constrangidos de dizer isso a ela, mostrando-se incapazes de cumprir a
promessa que lhe fizeram...
“Já sei!” disse de supetão o Prata. Vamos mandar a ela um convite
para a plateia!”
Dourado percebeu o plano: “Você não está pensando em...”
“Exatamente!” – Emendou Prata – “É isso mesmo! Vai ser de
surpresa!”
Dourado lhe deu um tapa nas costas: “Você é genial! Não sei como
não pensei nisso antes!” E saíram satisfeitos em direção à gaveta.
Dias depois a faquinha Azul recebe pelo Correio um passe de
entrada, junto com um bilhete assinado pelo Dourado, comunicando que haveria um
lugar na plateia reservado para ela, no espetáculo do dia seguinte.
Achou aquilo muito estranho. Depois de tanto tempo, um convite
assim... totalmente informal, num papel rabiscado, sem o timbre da empresa! O
que estaria acontecendo?
Mesmo com essas dúvidas, nem vacilou, e no dia seguinte lá estava
ela, no lugar reservado.
Começa o espetáculo. Os auxiliares colocam o pão e o dividem ao
meio, entra em cena o novo Pote de Orégano, e finalmente o facão Prata. Antes
dele iniciar o primeiro corte, vira-se para o público e diz: “Senhoras e
senhores, tenho uma surpresa reservada. Para fazer esse espetáculo, vou chamar
alguém da plateia. Alguém que todos conhecem... a faquinha Azul!”
Foi um choque. Azul estremece, fica por um momento atônita, mas
levanta-se e caminha até o palco. No camarim da diretoria, todos estão
atônitos. Mas, nessa altura, não podem fazer nada, é só torcer para dar certo.
Se der errado, os dois facões estarão demitidos.
Poucas palmas a princípio, mas quando a faquinha Azul sobe ao palco,
é ovacionada pelo público. Não há qualquer diálogo. Simplesmente Prata se
afasta e a deixa sozinha, para iniciar o espetáculo.
A faquinha Azul jamais vivera um momento como esse. Um verdadeiro
teste para seus nervos, para sua capacidade de controle emocional. Ela fecha os
olhos, pede ajuda a Deus e inicia o corte da primeira tirinha.
As dificuldades são grandes: faz muito tempo que ela não atua,
sente-se insegura e despreparada. O pão está rachado, quebradiço, e o queijo
tem que ser muito dividido para forrar toda a superfície.
Um horror!
A faquinha azul vacila, está a ponto de desistir. De repente,
lembra a sua primeira estreia. Não foi muito diferente. Naquela ocasião, era
uma desconhecida, tinha o público inteiro contra, esperando qualquer deslize
seu para vaiá-la, e no entanto se deu bem. Talvez a vida a coloque nessas
situações para que ela cresça. Pensando assim, ganha forças para reagir e
enfrentar a situação.
Os primeiros cortes foram decisivos. Agora ela ajeita os farelos
que caíram, e corta rente, de forma precisa. Os aplausos que ouve a incentivam.
Continua concentrada, cortando e consertando os defeitos do pão, empurrando as
sobras do queijo, e mantendo sempre espaços mínimos entre as tirinhas. O final
é bem tranquilo, pois as maiores dificuldades já haviam sido superadas.
Mas jamais poderia esperar o que virá a seguir.
A contagem final anuncia simplesmente... o recorde mundial de
todos os tempos! 25 tirinhas!
Faquinha Azul não credita. Deve ser um engano! O recorde é do
Prata, ela sempre achou que a marca de 24 era insuperável. Mas não houve
engano. A voz do alto-falante confirma as 25 tirinhas!
Facão Prata corre ao seu encontro, para abraçá-la. Mas antecipa-se
uma figura desconhecida: o Garfo de Espeto. Ele a abraça e beija demoradamente.
Facão Prata estanca, surpreso, olhando os dois, sem entender nada. Quando se
separaram, ele diz, muito sem jeito: “Parabéns, faquinha... você merecia. Você é
fantástica.” Ela então o abraça com força, chorando ao dizer: “Obrigada, meu
amigo, você não esqueceu de mim...”