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sexta-feira, 1 de abril de 2016

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 9 • A Preta e a Cinza


HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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• A Preta e a Cinza

Preta sempre teve consciência de sua beleza, de ser forte e resistente. Por isso não se surpreendeu ao ser preferida entre tantas outras, levada e colocada, com orgulho, num belo armário de sapatos.
Tinha por seu dono um grande afeto, quase o idolatrava, e ser correspondida era motivo para viver sempre orgulhosa. Sendo a única sandália no armário, era usada durante a maior parte do dia. No esplendor de sua juventude, nunca se sentia cansada, entregando-se de corpo e alma à missão de caminhar por onde seu dono quisesse ir. Só repousava tarde da noite, enquanto ele dormia, ou, muito raramente, nas ocasiões em que ele vestia aquelas calças compridas com sapatos, que ela odiava. Mas enquanto trajasse bermudas, como era mais comum, sentia-se uma princesa a enfeitar os pés de seu dono e a protegê-lo do contato com o chão. Uma grande missão, que estava certa de executar com muita competência.
Assim foram passando os dias e os meses.
Dedicava-se ao trabalho, sempre disposta a enfrentar todo tipo de chão, desde o limpo assoalho da casa, os ladrilhos, a grama do jardim, até as incógnitas calçadas das ruas, passando por cimento, asfalto e pedras, terra e lama, e por todo o tipo de detritos e dificuldades. Nessas ocasiões, sempre que chegava em casa era limpa por seu dono, lavada no tanque, e depois passava horas encostada na parede, no sol, até secar.
Não somente quando saía à rua é que Preta passava por esse trato, uma verdadeira penitência para ela. Também depois de a grama ser cortada, suas incursões pelo quintal terminavam com restos de mato grudados na sola, e a operação da lavagem no tanque era ainda mais demorada. Às vezes seu dono a esquecia no sol o dia inteiro e só à noite se lembrava de buscá-la. Isso a deixava triste, mas nunca a ponto de diminuir o amor que lhe dedicava.
Em oito meses de vida, Preta jamais notou que seu corpo estava, pouco a pouco, se desgastando. A idade chegara e ela ainda se sentia inteira, somente um pouco flácida, por isso provocando uma certa insegurança no caminhar de seu dono. Preta nada percebia, mantendo o mesmo ânimo de quando era jovem, sempre vaidosa, exibindo-se nas ruas com orgulho, sem se importar com os percalços do caminho...
Até que um dia, aconteceu um fato imprevisível e chocante, que mudou sua vida. Bem ao seu lado, no armário, foi colocada uma outra sandália. Toda cinza com fios pretos e um nome de grife, reluzente, nas tiras. A tal marca que ela cansava de ver na televisão, mas que nunca esperou encontrar pela frente, estava ali, de repente, diante dela.
“Quem é você?”, perguntou, surpresa e indignada.
“Sou a nova sandália”, respondeu a outra, com desdém. “Eu não sou como você, sou de grife. Eu é que pergunto o que você ainda faz aqui! Acho que você já era!”
Preta quase desmaiou. Durante a sua vida, o amor que dedicava a seu dono sempre foi correspondido. Sabia que era muito eficiente e também charmosa. Reparava nos elogios que lhe faziam através de seu dono: “Você fica bem com essa sandália preta!” E sempre foi prestigiada com o melhor lugar no armário de sapatos. Ver-se de repente abandonada, trocada por outra, não podia suportar. Por isso não conseguiu responder. Calada, ficou no seu canto e chorou muito a noite toda.
No dia seguinte, pela manhã, foi despertada pelo calor dos pés de seu dono. Radiante por ser escolhida – ela e não a outra –, caminhou, feliz, pela grama do jardim, em direção à mangueira de molhar plantas. Já estava acostumada com essa tarefa, sempre terminando encharcada, cheia de grama e terra grudada no corpo. Como esperava, no final foi lavada no tanque e deixada ao sol, para secar. Permaneceu o resto do dia ali e nada do seu dono chegar para levá-la ao armário. Que assim fosse, o importante é que não foi jogada no lixo, como chegou a temer.
Quando anoiteceu, ouviu passos se aproximando, e a cena que viveu foi humilhante. Nos pés do seu dono estava a Cinza, ostentando sua grife. Parou em frente e a olhou com desprezo, de cima a baixo. Em seguida, o dono a deixou no armário e seguiu com a Cinza para o passeio noturno.
Preta entendeu o recado. O dono escolhera a Cinza para as noites de lazer. A ela caberia, de agora em diante, somente os servicinhos sujos de molhar o jardim e outras tarefas caseiras... Pela primeira vez, Preta sentiu-se velha. Só então reparou que uma pequena rachadura começara a se formar no seu corpo. “O começo do fim”, pensou. A falha iria se alastrar, e em breve seria jogada no lixo. Foi uma noite de pesadelos. Viu-se transportada no caminhão do lixo... e esmagada, junto com porcarias de todo tipo... “Ah, meu Deus, prefiro ser queimada!”
Lá pela madrugada, acordou com a porta do armário sendo aberta, e a Cinza, esplendorosa, foi colocada ao seu lado.
“Não se preocupe, querida”, disse, naquele costumeiro tom de desdém – “Você vai ser aproveitada, não vai para o lixo, não. Eu fiz questão de ser usada só para sair, não quero me desgastar à toa... Os trabalhinhos caseiros continuam com você, querida.”
Preta sentiu um alívio misturado com muita indignação, ao ver seu dono se curvar assim às vontades de “uma novata, metida a chique”. Sabia que seu dono não era de seguir modismos, não era de ligar para essa coisa de grife. “Ele sempre gostou de mim assim como sou!”, pensava. Alguma coisa estranha acontecera...
O que aconteceu foi explicado pelo tênis Branco, na noite seguinte. Era bem raro o dono calçar tênis, eles geralmente saíam da toca só no inverno. Mas, nessa tarde, o dono resolveu usar o tênis Branco e, na volta, o deixou ao lado da Preta. Os dois se conheciam, apesar de quase nunca terem se falado.
Branco quis puxar assunto: “O que achou de sua nova companheira?”, perguntou, sem saber que tocara o dedo na ferida. Mas Preta compreendeu que não houve maldade, e respondeu com uma naturalidade forçada: “Ela é muito chique...”  ao que Branco emendou: “É mesmo, e foi presente de aniversário!”
Preta estremeceu. Lembrou-se que seu dono fizera aniversário na véspera do aparecimento da Cinza. “Então, não foi escolha dele!” – concluiu.
Essa revelação desculpava o seu dono, apenas em parte. Explicava o fato de a sandália ser de grife, mas não justificava a preferência do seu dono por ela. E essa preferência era cada vez mais evidente, pois o melhor lugar no armário passou a ser da Cinza.
Contudo, isso contribuiu para que Preta conseguisse se adaptar à nova situação, ignorando os olhares de superioridade da Cinza e conformando-se em andar somente pela casa e pelo jardim. Não tinha outro jeito, essa seria sua vida dali em diante.
Até que, numa tarde, o curso de sua vida mudou bruscamente. O sol foi ficando encoberto por nuvens negras que se aproximaram rapidamente. Ignorando a ameaça da natureza, o dono manteve sua caminhada noturna com a Cinza, e seguiram seu caminho habitual. Cerca de quarenta minutos após saírem, caíram os primeiros pingos. Estrondos e relâmpagos dominaram o céu, e em poucos minutos o aguaceiro desabou como uma imensa cachoeira.
Do seu canto, no armário, Preta ouvia os trovões e o barulho da chuva forte no telhado e no jardim, que já ameaçava se transformar numa piscina rasa.
A tempestade, muito forte, durou cerca de duas horas, depois foi abrandando, até que, lá por volta de uma e meia da madrugada, restava só uma chuvinha fina com um pouco de vento. Durante esse tempo, Preta não conseguiu pegar no sono, preocupada com seu dono e até mesmo com a Cinza. Diante da grave situação, ela esqueceu o esnobismo da outra.
Eram duas e meia da manhã, quando ouviu o barulho da chave abrindo a porta da rua. Chegaram, finalmente, em passos lentos, pelo corredor da sala. Preta enxergou, pela brecha da porta, seu dono entrando no banheiro, com as roupas encharcadas, descalço, carregando na mão a sandália. Passou lá algum tempo. Depois, enrolado numa toalha, entrou no quarto trazendo a Cinza na mão. Colocou-a ao seu lado e saiu.
Cinza estava irreconhecível. Mesmo tendo sido lavada no banheiro e enxugada com cuidado, estava impregnada de manchas escuras, e uma de suas tiras ameaçava soltar-se. Ela voltou-se para Preta e falou num tom que nunca havia falado. “Oh, Preta... Você não sabe o que eu passei... Foi Deus que me ajudou, eu quase morri...” Sua voz era trêmula, ainda cheia de medo.
“Fale,” disse Preta, “conte o que aconteceu, você vai se sentir melhor se contar.”
Pela primeira vez Cinza a tocou com carinho, agradecendo, e continuou: “A rua alagou, eu me vi no meio de um lamaçal que me puxava, me puxava, e acabou me afastando do nosso dono. Eu me separei em duas. Metade de mim ficou no meio de um monte de latas e de plásticos, e eu fui arrastada pela lama até perto de um bueiro de rua. Se caísse, morreria. Fiquei a mercê da correnteza, que me desviou para o canto da calçada, e ali fiquei. Quando a chuva passou e a água baixou, pude ver como estava a rua: tudo era lama, misturada com lixo, com garrafas e latas, com ratos mortos, com tudo...” As palavras foram embargadas pelas lágrimas. Cinza chorou muito, enquanto Preta a acariciava, com um carinho que jamais pensou que existisse. As duas se abraçaram, demoradamente.
Quando Cinza se refez e conseguiu falar, suas palavras pareciam vir de uma outra Cinza, que acabara de nascer. “Nosso dono apareceu, carregando na mão a minha outra parte, e só então vi que estava salva. Tive muita sorte! Senti que nasci de novo! E nessa hora, os valores mudaram para mim.
Vi como a nossa vida é fugaz. O quanto é sem valor esse nome gravado em mim, o quanto é banal a marca da televisão, como isso tudo é uma bobagem! Então eu me lembrei de você, Preta... me lembrei o quanto fui injusta com você esse tempo todo...
Se você puder me perdoar... Se você conseguir... eu queria muito ser sua amiga...” A forte emoção transformou-se novamente em lágrimas.
“Nunca é tarde para enxergar! Se você se arrependeu... você está perdoada, sim... e agora somos amigas!”, disse Preta, também chorando. 
Felizmente os danos causados não chegaram a afetar o corpo da Cinza, que depois de várias lavagens voltou a ficar em forma. Por incrível que pareça, talvez percebendo a energia de amor que passou a envolver o armário dos sapatos, o dono resolveu tratar igualmente as duas sandálias, ora usando uma, ora outra, para qualquer tarefa. 
Assim termina esta história, em plena paz.