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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 5 • Rviravolta no Torneio




HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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 A SAGA DOS FACÕES
Capítulo II
Reviravolta no Torneio 
(Continuação de Novo recorde mundial – setembro de 2015)


       O grande Torneio de Tirinhas esteve a ponto de acabar. Em pleno apogeu, com o estádio sempre cheio e rendendo milhões, eis que os facões, tanto o Rebite Prata quanto o Dourado, ambos protagonistas principais do evento, foram repentinamente afastados, sem nenhuma explicação, condenados a viver na velha gaveta da churrasqueira, junto com os talheres de churrasco, adquiridos numa loja popular.
Em seu lugar, foi empossada a recente aquisição: uma faca de cabo plástico azul, que habitava justamente a gaveta da churrasqueira, para onde foram levados os facões. Muito menor que eles, sem nenhuma experiência de torneios, ainda assim foi contratada.
O acontecimento chocou a todos, e não faltaram especulações da imprensa. Dizem que tudo foi causado pela esposa do diretor de eventos, que ao ver a faquinha apaixonou-se por ela e a recomendou para o torneio, com o argumento de que sua beleza iria atrair mais público. Pressionou tanto o marido, que ele acabou cedendo ao seu capricho.
O fato é que, uma vez consumada a demissão dos facões, anunciou-se imediatamente a estreia da Faca Azul – como foi batizada –, para o próximo Torneio de Tirinhas.
Na manhã do evento, o movimento nas ruas era grande. O público lotou o estádio, não para ver seu ídolo, como antes fazia, mas sim para vaiar e debochar da estreante, pois todos tinham como certo o vexame que iria acontecer.
A expectativa era enorme, até que se iniciou espetáculo, com a chegada da tábua, do queijo e do tradicional pote de orégano, sempre presente e atuante. Após a cerimônia da separação das duas bandas do pão, a Faca Azul finalmente entrou em cena cortando o queijo e distribuindo as fatias sobre o pão. O público, atento, esperava só um pequeno deslize para começar uma grande vaia... Mas o deslize acabou não acontecendo. A Faca Azul surpreendeu. Saiu-se muito bem nessa primeira etapa. Depois, esperou o Pote de Orégano cumprir a sua tarefa, para iniciar a parte mais difícil: a de cortar as tirinhas.
Atrapalhou-se um pouco no início, mas acabou muito melhor do que o esperado. Não se perdeu em momento algum e terminou com um corte transversal para a esquerda, na última tira – considerado uma ousadia criativa. A contagem registrou 14 tiras, o que para uma estreante era um grande resultado. E sua criatividade no corte transversal foi marcante. Acabou, inclusive, arrancando algumas palmas do público, ainda que a contragosto de todos.
Daí em diante, pouco a pouco afrouxou a pressão contra ela, embora a lembrança dos facões Rebite Prata e Dourado, ídolos da multidão, estivesse ainda viva nas mentes do povo. Muitos choravam por eles, e colocavam mensagens em redes sociais pedindo a sua volta. Todo esse movimento acabou surtindo efeito, pois logo as TVs anunciaram um pronunciamento deles, ao vivo, diretamente de onde estavam – no armário da churrasqueira.
Nesse dia a audiência foi absoluta, mas a transmissão tinha tanta interferência estática, que praticamente só o áudio funcionava, tendo a emissora que exibir uma foto de arquivo dos dois facões. Porém somente Rebite Prata falou, o seu amigo não quis se manifestar.
Mesmo assim a entrevista foi comovente. Prata não mostrou-se magoado e até incentivou a nova protagonista do evento. Com a voz tranquila, disse ter assistido a estreia da Faca Azul pela TV e que via nela muito talento. Ofereceu sua experiência, caso a “faquinha” precisasse de algum conselho. A Azul, em contato direto, chorou ao ouvi-lo e aceitou prontamente a oferta, tratando-o de “grande mestre”. Aproveitou para esclarecer que não foi ideia sua o que aconteceu, que nunca desejou ocupar o lugar deles, deixando claro que a culpa toda foi mesmo da esposa do diretor.
Esse pequeno diálogo, transmitido nacionalmente por todas as TVs, repercutiu muito bem em favor da Faca Azul. Deu-lhe mais confiança, pois realmente era muito talentosa, e ela passou a fazer todas as tarefas cada vez melhor, no Torneio das Tirinhas. Sua habilidade era evidente, e não parava de receber elogios do seu “mestre’, através do telefone instalado especialmente para ela.
Já então o público a aplaudia, mas estava longe de lotar a plateia. Muita gente ainda relutava assisti-la, talvez por solidariedade a seus antigos ídolos, injustamente afastados. Percebendo isso, a direção promoveu, com apoio das TVs, outra transmissão direta, dessa vez com a imagem garantida.
Rebite Prata apareceu nitidamente na tela, mas novamente sozinho. Como era seu jeito, evitou revelar qualquer mágoa sobre os motivos de seu afastamento. Preferiu gastar o seu tempo incentivando a “faquinha” Azul, como a chamava carinhosamente, afirmando sua certeza de que ela saberia superar a dificuldade do seu tamanho com muita técnica, e se tornaria uma grande profissional, pois talento não lhe faltava.
No dia seguinte houve muito mais gente na plateia, mas ainda assim não lotou. A razão, sem dúvida, foi a lembrança saudosa dos facões, bem sabiam os organizadores do evento. Como também sabiam que isso os faria perder dinheiro. E muito.
Ocorreu então a única ideia possível para sanar a situação: chamar de volta, se não os dois facões, pelo menos o Rebite Prata. Essa ideia foi aprovada unanimemente na reunião convocada às pressas. Mas acertaram que tudo deveria ser feito em sigilo, sem cobertura da imprensa, para que a surpresa causasse um grande impacto no público.
Imediatamente contataram os facões e propuseram o retorno do Prata, com a condição de que ele jamais questionaria seu afastamento, pelo menos publicamente. Ao contrário do que esperavam, sua reação não foi de euforia. Pediu um tempo para pensar, alegando que já estava fora há muito tempo, que não sabia se iria ter a mesma disposição nem a mesma destreza. E principalmente, porque teria de se afastar de seu amigo, pois ele desejava viver em completo anonimato.
Os empresários deram o tempo necessário, mas voltaram a contatá-lo e a negociação finalmente chegou a um acordo. Ele voltaria, mas poderia escolher os dias para atuar, sem compromisso de continuidade. E seu companheiro Rebite Dourado ficava lá, mas com todas as regalias possíveis, podendo vir quando desejasse.
  O sigilo foi mantido, mas não totalmente. Vazou para um funcionário da empresa, que correu para contar a novidade à Faca Azul, pouco antes do espetáculo. A notícia a fez sair-se muito bem nesse dia. Cortou as fatias de queijo de modo perfeito e recebeu muitas palmas. Motivada pelo que estava por acontecer, terminou com 17 tirinhas, um antigo recorde mundial, que para ela representava muito. Destacou-se também no transporte e na colocação criativa das tirinhas na bandeja, seguindo um caminho inverso, esbanjando criatividade. Dessa vez, foi aplaudida demoradamente, quase ovacionada. O público finalmente reconhecia seu talento.
Sabedora da volta dos facões, depois de agradecer as palmas, ela fez uma declaração bombástica: “Tenho certeza de que Rebite Prata e Rebite Dourado estarão novamente aqui. Nesse dia eu passarei o bastão para eles, com muita honra!”
Aí então, recebeu uma grande ovação do público. Essa declaração repercutiu em toda a imprensa. Todos comentavam o fato, alguns achando que foi uma pista do que iria acontecer, enquanto outros interpretaram simplesmente como uma demonstração de amor. Todos, enfim, a partir daí a aceitaram definitivamente como uma profissional capaz e competente. Nascia ali uma nova estrela.
A partir desse dia o público aumentava a cada espetáculo, até se equiparar com o do tempo dos facões. Faca Azul descobrira uma nova maneira de atuar, diferente da convencional e adaptada ao seu tamanho. Consagrou-se, finalmente, em grande parte consequência dos conselhos e incentivos que recebeu pelo telefone, sistematicamente, do seu mestre. 
Poucos dias depois, durante sua apresentação, fez-se uma pausa para o autofalante anunciar que Rebite Prata estava de volta, e brevemente se apresentaria ao público. Euforia total. Gritos se confundiram com palmas em todo o estádio. Ninguém prestou mais atenção ao espetáculo, nem mesmo os participantes, e a faquinha, visivelmente comovida, terminou apressadamente sua apresentação. Correu para o camarim e chorou de alegria.
No espetáculo de retorno do Facão Prata, o estádio não comportou a quantidade de público, e uma multidão se formou do lado de fora, para assistir por telões.
Facão Prata estava nervoso como nunca estivera, em grande parte pela falta do apoio de seu amigo Dourado, que ficara na gaveta da churrasqueira. Sentiu-se inseguro, pois havia anos que não se exibia publicamente. E foi com esses pensamentos que entrou em cena, tremendo diante da gritaria e dos aplausos do público. Se pudesse, naquele momento desistiria e voltaria ao aconchego da sua gaveta. Vacilou ao iniciar seu primeiro corte, largo demais, sem a decisão e a presteza que sempre teve, e o pão resistiu, não cortou. Teve de repetir com toda a força que pôde, e por isso deslizou, espalhando resíduos, fazendo uma verdadeira lambança. 
Parecia inevitável o fracasso completo, mas foi aí que seu talento nato falou mais alto. Com a ponta, num gesto rápido e preciso, consertou o erro e arrumou a tirinha. Cortou novamente, agora mais concentrado, e conseguiu um belo corte. Foi aplaudido por esse lance. Seguiram-se as outras tiras, de modo competente, sem erros. Mas também sem o brilho de outrora.
Quando terminou, Facão Prata foi aplaudido demoradamente, mas estava consciente que sua performance foi muito aquém da expectativa. Mesmo assim, a faquinha Azul correu a abraçá-lo, emocionada. Era seu mestre querido e seu ídolo, nada importava a atuação que teve.
Essa demonstração de afeto o reconfortou muito naquele momento. Os dois acabaram se isolando de todos, absortos numa conversa que se prolongou mesmo depois que saíram do estádio. Contaram um ao outro suas façanhas, alegrias e também os dissabores que passaram na vida. A amizade que existia, solidificou-se nesse dia.

O problema agora é como iria ser dali em diante. Certamente muita coisa estava para acontecer...