HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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• Justiça ao comprimido
branco
Há um grande evento diário, logo após a cerimônia do Café da
Manhã, que vem conquistando grande público. Trata-se do Espetáculo dos
Comprimidos.
São cinco comprimidos para engolir. Um copo com água de coco é
colocado sobre a toalha, para que a tarefa seja mais prazerosa. Os comprimidos
têm cores diferentes, sendo dois vermelhos, um verde (esses chamados de
“coloridos”), e dois brancos – um deles minúsculo e o outro mais do que o dobro
do seu tamanho. Os coloridos, principalmente os dois vermelhos, sempre correm e
se apresentam na frente. Pulam do vidro, já afoitos para entrar na
boca e começar a emocionante viagem interna. Os dois brancos ficam por
último, sendo que o grande comprimido branco sempre cede a vez ao pequeno.
Inevitavelmente, a cada espetáculo, o comprimido grande oferece
gentilmente a vez ao menor. Esse gesto, mantido até hoje, sempre foi
reconhecido por todos como uma demonstração de desprendimento e companheirismo,
diante da fragilidade e da timidez do pequeno comprimido. Certamente foi o que
cativou o público, que a cada evento comparecia mais. Todos comentavam a
gentileza do comprimido que, mesmo sendo muito maior, cedia a vez.
Porém, houve um momento em que uma denúncia terrível colocou em
cheque a boa intenção e até o caráter do grande comprimido branco.
A denúncia era fundada no fato de que os comprimidos coloridos
consomem pouquíssimo líquido ao deslizarem pela garganta. Portanto, o
comprimido branco, ao ceder a vez ao frágil comprimidinho e ficar por último,
usufruía de praticamente metade da água de coco do copo. Não havia nada de
companheirismo nisso, mas sim puro interesse. Tratava-se de um aproveitador!
A notícia fez tanto sentido, que espalhou-se rapidamente. A
imprensa deu destaque, com maldosas entrevistas entre o público. O “comprimido
branco desmascarado” foi a grande fofoca do momento.
Todos aguardaram ansiosamente o próximo espetáculo, para
ver o comportamento dos comprimidos depois do escândalo. Segundo os
noticiários, os coloridos, ao tomarem conhecimento da denúncia, se revoltaram e
quase expulsaram o branco do grupo. Só não o fizeram porque a sua permanência
era questão de ordem médica.
Toda a cidade comentava o fato, sendo
voz geral de que o comprimido branco seria a tal ponto repudiado pelo público
que sua carreira estaria encerrada após a próxima apresentação.
Finalmente, o decisivo evento se iniciou. Fez-se um silêncio
absoluto no público quando o apresentador chamou os comprimidos, e como sempre
os primeiros levados à boca foram os coloridos. Todos estavam extremamente
nervosos. Os vermelhos consumiram mais líquido do que de costume, por isso o
comprimido verde desceu pela garganta, praticamente sem líquido, provocando um
“Ohhhh” na plateia.
Enfim, chegou o momento mais aguardado, dos dois comprimidos
brancos se apresentarem. Toda a plateia percebeu a grande quantidade de água de
coco ainda restante no copo, e os comentários formaram um vozerio alto e
contínuo.
Como sempre, o comprimido grande cedeu a vez ao pequenininho, que
deslizou pela garganta sob aplausos, pois todos sabiam de sua inocência, e que
sempre foi “usado” pelo maior.
Chegou o momento fatídico: o grande comprimido branco se
apresentou.
Imediatamente, uma vaia crescente tomou conta do estádio. Gritos
de “fora!”, “aproveitador!”, em coro.
O comprimido branco não se moveu. Permaneceu de pé, durante um bom
tempo, absorvendo a vaia estrondosa. Nem sequer subiu à boca, ao ser chamado
pelo autofalante.
De repente, não conseguiu mais se controlar. Com a fisionomia
contraída, sua emoção explodiu num grito: – Parem! Parem! Eu quero falar! Eu
quero falar!
O público se calou, talvez por curiosidade, e resolveu ouvi-lo.
Sob forte emoção, ele iniciou um discurso.
– Eu não sou o que vocês dizem! Não sou um aproveitador! Sou
apenas um comprimido! Eu não sinto gosto! Quem sente o gosto são vocês,
humanos! São vocês que têm paladar, são vocês que sentem o prazer da água de
coco! Eu apenas caio na garganta! O meu único prazer é a viagem pelas entranhas
do corpo, me dissolvendo até desaparecer! Me deixem em paz! Me deixem cumprir a
minha missão!
As lágrimas o impediram de prosseguir. Mas bastou. O público
continuou em completo silêncio, deglutindo aquelas verdades tão claras. E pouco
a pouco, começaram a compreender a trama que os envolveu: a denúncia fora mera
invenção da imprensa, unicamente para conseguir audiência. Não hesitaram em
armar aquele plano diabólico, visando exclusivamente o lucro, ainda que
destruindo um inocente. Mas, naquele momento, depois do desabafo emocionado do
comprimido branco, todos os presentes acabaram percebendo a injustiça a que
foram induzidos a praticar.
O comprimido, ainda em pranto, com as mãos sobre o rosto, começou
a ouvir os primeiros gritos de “Viva o branco!”, que acabaram tomando conta do
estádio.
Finalmente, sob ovação, o grande comprimido branco deslizou pela
língua e entrou na garganta, iniciando sua derradeira viagem.
A justiça dessa vez venceu.