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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

• HISTÓRIAS DAS COISAS – 3 • Justiça ao comprimido branco



HISTÓRIAS DAS COISAS (objetos como  personagens), são publicadas mensalmente, desde agosto de 2015.
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Justiça ao comprimido branco

Há um grande evento diário, logo após a cerimônia do Café da Manhã, que vem conquistando grande público. Trata-se do Espetáculo dos Comprimidos.
São cinco comprimidos para engolir. Um copo com água de coco é colocado sobre a toalha, para que a tarefa seja mais prazerosa. Os comprimidos têm cores diferentes, sendo dois vermelhos, um verde (esses chamados de “coloridos”), e dois brancos – um deles minúsculo e o outro mais do que o dobro do seu tamanho. Os coloridos, principalmente os dois vermelhos, sempre correm e se apresentam na frente. Pulam do vidro, já afoitos para entrar na boca e começar a emocionante viagem interna. Os dois brancos ficam por último, sendo que o grande comprimido branco sempre cede a vez ao pequeno.
Inevitavelmente, a cada espetáculo, o comprimido grande oferece gentilmente a vez ao menor. Esse gesto, mantido até hoje, sempre foi reconhecido por todos como uma demonstração de desprendimento e companheirismo, diante da fragilidade e da timidez do pequeno comprimido. Certamente foi o que cativou o público, que a cada evento comparecia mais. Todos comentavam a gentileza do comprimido que, mesmo sendo muito maior, cedia a vez.
Porém, houve um momento em que uma denúncia terrível colocou em cheque a boa intenção e até o caráter do grande comprimido branco.
A denúncia era fundada no fato de que os comprimidos coloridos consomem pouquíssimo líquido ao deslizarem pela garganta. Portanto, o comprimido branco, ao ceder a vez ao frágil comprimidinho e ficar por último, usufruía de praticamente metade da água de coco do copo. Não havia nada de companheirismo nisso, mas sim puro interesse. Tratava-se de um aproveitador!
A notícia fez tanto sentido, que espalhou-se rapidamente. A imprensa deu destaque, com maldosas entrevistas entre o público. O “comprimido branco desmascarado” foi a grande fofoca do momento.
Todos aguardaram ansiosamente o próximo espetáculo, para ver o comportamento dos comprimidos depois do escândalo. Segundo os noticiários, os coloridos, ao tomarem conhecimento da denúncia, se revoltaram e quase expulsaram o branco do grupo. Só não o fizeram porque a sua permanência era questão de ordem médica.
Toda a cidade comentava o fato, sendo voz geral de que o comprimido branco seria a tal ponto repudiado pelo público que sua carreira estaria encerrada após a próxima apresentação. 
Finalmente, o decisivo evento se iniciou. Fez-se um silêncio absoluto no público quando o apresentador chamou os comprimidos, e como sempre os primeiros levados à boca foram os coloridos. Todos estavam extremamente nervosos. Os vermelhos consumiram mais líquido do que de costume, por isso o comprimido verde desceu pela garganta, praticamente sem líquido, provocando um “Ohhhh” na plateia.
Enfim, chegou o momento mais aguardado, dos dois comprimidos brancos se apresentarem. Toda a plateia percebeu a grande quantidade de água de coco ainda restante no copo, e os comentários formaram um vozerio alto e contínuo.
Como sempre, o comprimido grande cedeu a vez ao pequenininho, que deslizou pela garganta sob aplausos, pois todos sabiam de sua inocência, e que sempre foi “usado” pelo maior.
Chegou o momento fatídico: o grande comprimido branco se apresentou.
Imediatamente, uma vaia crescente tomou conta do estádio. Gritos de “fora!”, “aproveitador!”, em coro.
O comprimido branco não se moveu. Permaneceu de pé, durante um bom tempo, absorvendo a vaia estrondosa. Nem sequer subiu à boca, ao ser chamado pelo autofalante.
De repente, não conseguiu mais se controlar. Com a fisionomia contraída, sua emoção explodiu num grito: – Parem! Parem! Eu quero falar! Eu quero falar!
O público se calou, talvez por curiosidade, e resolveu ouvi-lo. Sob forte emoção, ele iniciou um discurso.
– Eu não sou o que vocês dizem! Não sou um aproveitador! Sou apenas um comprimido! Eu não sinto gosto! Quem sente o gosto são vocês, humanos! São vocês que têm paladar, são vocês que sentem o prazer da água de coco! Eu apenas caio na garganta! O meu único prazer é a viagem pelas entranhas do corpo, me dissolvendo até desaparecer! Me deixem em paz! Me deixem cumprir a minha missão!
As lágrimas o impediram de prosseguir. Mas bastou. O público continuou em completo silêncio, deglutindo aquelas verdades tão claras. E pouco a pouco, começaram a compreender a trama que os envolveu: a denúncia fora mera invenção da imprensa, unicamente para conseguir audiência. Não hesitaram em armar aquele plano diabólico, visando exclusivamente o lucro, ainda que destruindo um inocente. Mas, naquele momento, depois do desabafo emocionado do comprimido branco, todos os presentes acabaram percebendo a injustiça a que foram induzidos a praticar.
O comprimido, ainda em pranto, com as mãos sobre o rosto, começou a ouvir os primeiros gritos de “Viva o branco!”, que acabaram tomando conta do estádio.
Finalmente, sob ovação, o grande comprimido branco deslizou pela língua e entrou na garganta, iniciando sua derradeira viagem.
A justiça dessa vez venceu.